segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Adeus a Revolução Sexual? – O estreito horizonte do movimento LGBT atual

Andrea D’Atri – Especialista em Estudos da Mulher
Celeste Murillo – Comitê de Redação


A Argentina é um dos dezesseis países do mundo – o primeiro na América Latina – que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo – ainda que a lei tenha sofrido vários tropeços antes de ser votada no Senado, em julho de 2010, por uma pequena diferença e depois de muitas horas de debate[1].
A crise que começou em dezembro de 2001 – com o surgimento de movimentos de desempregados, assembleias de bairro e fábricas ocupadas por trabalhadores – colocou também as demandas do movimento de mulheres e do movimento LGBT na mesa. A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi uma dessas bandeiras e, em 2012, a cidade de Buenos Aires estabeleceu o regime de união civil na sua jurisdição. Logo, inúmeras organizações nucleadas na Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans, privilegiaram estratégias jurídicas e parlamentares, limitando a crescente mobilização da comunidade LGBT a pressão pela lei do matrimônio igualitário. Então, o que poderia ter sido um grande ponto de partida para fortalecer a luta LGBT, logo se tornou um teto.
Mas, apesar de suas limitações, o debate da lei não só beneficiou a vida de um setor da comunidade de gays e lésbicas, permitiu sua visibilidade e uma crescente aceitação social da condição da homossexualidade, mas também, além disso, impulsionou um “espírito igualitário” em amplos setores das massas. Os meses em que a lei tramitou no Congresso, a classe trabalhadora e a juventude debateram nas fábricas, escolas e escritórios, enfrentando velhos preconceitos e mostrando que os 70% de aprovação que tinha o projeto não foi uma invenção dos pesquisadores. Dois anos depois a Lei de Identidade de Gênero foi aprovada, lei fundamental para avançar na equidade de pessoas transexuais. Porém, logo ficou claro que a igualdade perante a lei não é ainda a igualdade perante a vida e que, tanto no ambiente de trabalho como no da saúde, ainda persiste a discriminação.
Essas experiências – que merecem uma análise própria, que não é o propósito desse artigo – concentraram, em curto tempo, as lições de quatro décadas do movimento de libertação sexual: demandas, alinhamentos estratégicos e um desvio na cooptação que nos propomos a examinar criticamente.

Stonewall e o surgimento do movimento de liberdade sexual

A radicalização das massas que se estendia desde o final dos anos 60 até o início dos anos 80, se expressou também no caráter anticapitalista sustentada por amplos setores dos movimentos sociais que, nesse mesmo período, questionavam todos os aspectos da vida.
Em meados de 1969, a batida policial no bar Stonewall parecia uma a mais das habituais em Greenwich Village de Nova Iorque, mas desta vez não acabou como sempre: gays, lésbicas e travestis se enfrentaram durante três dias com as forças repressivas dando origem, apenas uma semana depois, para a formação da Frente de Liberação Gay (GLF). Esta coalizão, que reunia pela primeira vez, todas as organizações existentes, logo se espalhou por várias cidades dos EUA e abriu o caminho para a criação de outras agrupações e alianças em muitos países[2].
As barricadas de Stonewall foram um ponto de viragem. Três anos antes, em outro bar de Nova Iorque, havia sido desafiada a proibição do governo em servir bebidas alcoólicas a homossexuais e, em 1967, na mesma cidade, abria suas portas a livraria Oscar Wilde, a primeira do mundo destinada a leitores homossexuais. Mas em Stonewall bastou que uma lésbica, enquanto era arrastada, gritasse à multidão “Por que não fazem algo?” para que a faísca incendiasse o bairro inteiro[3]. Um ano mais tarde, a comemoração organizada pela GLF em Nova Iorque reuniu quase dez mil pessoas. Outras manifestações recorreram às ruas de Los Angeles e São Francisco, e o movimento assumiu a luta pela liberdade dos presos políticos, contra a guerra do Vietnã, contra o racismo, etc.
Nos primeiros anos da década de 70 a homossexualidade foi discriminalizada em quase todos os países do Ocidente, ainda que continuasse considerada uma patologia[4]. Como destaca Carlos Figari:

O movimento homossexual começou a levantar como problemas a considerar na agenda política valores de sua vida cotidiana, tornar público o privado, se auto afirmar como sujeitos homossexuais na sociedade. Este último supunha uma reversão identitária na categoria de interpelação definida como homossexual, que, do termo médico para classificar uma enfermidade passou a ser uma categoria política afirmativa da diferença[5].

As identidades que haviam sido discriminadas e perseguidas se levantavam com orgulho, questionando todas as instituições que reprimiam a sexualidade, buscando novas formas de relacionar-se sexo-afetivamente e desafiando os preceitos morais que os condenava a marginalização. O resultado foi a conversão da rebeldia em política de identidade, para a exigência de maiores direitos. Contudo, essa rebelião, que atravessou fronteiras e gerações, tornou possível que se suscitasse muitas mudanças impensáveis pouco tempo antes para gays e lésbicas.

A “peste rosa”, a reação conservadora e os direitos civis

No final dos anos 70, a direita cristã começou a se organizar contra os crescentes movimentos feministas e de liberdade sexual. Floresceram os grupos “pró-vida” e “pró-família” que sustentaram o modelo de casais heterossexuais monogâmicos e o rechaço ao direito ao aborto. Em 1978, o cardeal Karol Wojtyla assume o papado, que colocou um forte caráter neoconservador à política do Vaticano, não somente na luta “contra o comunismo”, mas também contra a legalização do aborto, que tinha sido alcançado em muitos países, e outros direitos conquistados pelo movimento de mulheres e pelo movimento de libertação sexual. Mas um dos golpes mais duros que a comunidade homossexual recebeu chegou a meados de 1981, quando o Centro para Prevenção e Controle de Doenças dos EUA anunciou o desenvolvimento de alguns casos de pneumonia associado com o sarcoma de Kaposi. A maioria dos enfermos eram homossexuais e morreram em poucos meses, o que foi o suficiente para espalhar o pânico na comunidade gay, que foi estigmatizada brutalmente e que provocou uma verdadeira “caça às bruxas”
Aquela solidariedade que a comunidade homossexual havia conquistado de amplos setores sociais e políticos, começava a se liquefazer ao passo que se estendia a pandemia e a discriminação que surgia dos preconceitos e medo, incutido pela ignorância e os grupos reacionários.
A restauração conservadora, encabeçada por Reagan e Thatcher, com altas taxas de desemprego, privatizações e cortes do gasto público, aumento da espoliação dos países semicoloniais com as dívidas externas e a queda da União Soviética, foi acompanhada pela propaganda reacionária da “peste rosa”, que atuou como disciplinador daquele movimento que, no final dos anos 60, havia emergido questionando a heteronormatividade, a monogamia e a família patriarcal.
Somente em 1987 foi lançado o primeiro programa global de combate a AIDS: levou quase uma década para estabelecer a origem do vírus, descobrir medicamentos para o tratamento da infecção e ter um conhecimento mais preciso sobre as vias de contaminação. Durante toda essa década, o movimento de libertação gay centrou seus maiores esforços na prevenção da infecção, na difusão da informação científica e em ajudar as pessoas infectadas. E junto com esta nova atividade foi adquirindo outra fisionomia: surgem ONGs financiadas por agências internacionais, empresas e diversos organismos estatais. Por exemplo, a Associação Lésbica e Gay Internacional (ILGA), fundada em 1978, multiplica de maneira crescente seus membros em todo o mundo, se convertendo em uma das maiores ONGs, e centra sua atividade nas conferencias mundiais da ONU onde, para 1993, consegue o status de membro consultivo (que perde em 1995 e recupera em 2011 até o presente).
Os fundos internacionais para o “combate a AIDS” deram maior visibilidade e poder aos grupos de homens homossexuais. Lésbicas feministas, negras e de países do chamado “Terceiro mundo”, fizeram ouvir sua voz denunciando a invisibilidade e subordinação das mulheres no movimento de libertação homossexual misto. Também disseram que não se sentiam representadas pelas porta-vozes brancas, de classe média e de países centrais, a quem questionavam suas concepções “essencialistas”. Distintos ativistas do movimento gay-lésbico tem questionado essa contradição, segundo a qual, ao mesmo tempo em que se desenvolvia o movimento a nível internacional, se aprofundava as necessidades de apenas um setor de melhor posição social e econômica que reivindicava por direitos civis, inclusão de novos padrões de consumo e “tolerância”[6].
A institucionalização sob o “flagelo” da AIDS, e as políticas de identidade, questionadas pelos setores mais invisibilizados e subordinados, levaram a crises, rupturas e rachas que levaram a uma reconfiguração do movimento. O caminho que o feminismo atravessou durante essas décadas encontra um paralelo com o movimento de libertação sexual[7]. Por um lado, líderes da comunidade gay se transformaram em uma nova “tecnocracia” administradora de abundantes financiamentos e dedicada ao lobby político nacional e internacional para a regulação e o estabelecimento de legítimos direitos civis, que não questionavam a ordem imposta pelas democracias capitalistas, mas exigiam a inserção nela. Por outro lado, uma pandemia – que não somente afetava aos homossexuais, mas também e fundamentalmente a mulheres heterossexuais de populações vulneráveis, pobres e em sociedades onde prevalecia uma cultura patriarcal – que se tornou a desculpa para lançar ao fogo da discriminação, do desprezo e da marginalização milhões de gays, lésbicas e transexuais, especialmente os mais pobres. Nesses anos, Nestor Perlongher se perguntava sobre essa questão:

...pode-se perguntar até que ponto a assunção da identidade não pode implicar as vezes a domesticação – por via da normatização -, da adaptação a um determinado modelo de certa cotidianidade transgressiva[8].

Como aconteceu também no movimento feminista, a política de identidade –questionada por impor uma homogeneização essencialista que funciona como um disciplinador do grupo que não só descreve mas que também prescreve - conduziu a despolitização do movimento de libertação sexual que se transformou no movimento LGBT, sigla que varia em função de novas identidades dissidentes da heteronorma que vão se configurando e reconhecendo. O que seguiu, foi a política queer, que fez estourar pelos ares as múltiplas identidades para salientar que o mais subversivo era resignificar ou parodiar os gêneros impostos pela hetorossexualidade compulsória e não se ancorar em uma identidade que é sempre coercitiva, normativa e repressiva.
O movimento teve uma deriva equivalente ao que também teve o feminismo; desde as barricadas de Stonewall e a intempestiva intervenção de rua daquelas pessoas que tinham tido negado seus direitos mais mínimos à existência civil, até a intervenção subjetiva, hormonal, cirúrgica ou artística sobre o próprio corpo, para rebelar-se contra a ordem binária dos gêneros que impõem a linguagem e a cultura heteronormativas.
Ali, por fora da própria subjetividade, onde as democracias capitalistas continuam funcionando como um fetiche que esconde, sob a igualdade perante a lei, as mais brutais desigualdades da exploração e opressão que existem na vida, o movimento LGBT se limita a reivindicação de uma maior inclusão que, ao mesmo tempo que é alcançado, domestica suas arestas mais revulsivas[9].

Defender todos os direitos, questionar tudo

Neste cenário, as correntes de esquerda não tem atuado de forma homogênea. Existem correntes que, de forma acrítica, seguem repetindo as demandas dos movimentos sociais se adaptando a seus limites, sem levantar uma perspectiva anti-capitalista e revolucionária para as lutas pela liberdade sexual. Outras tem reproduzido as perseguições mais terríveis de gays e lésbicas dentro de suas próprias fileiras, instauradas pelo stalinismo já nos anos 30, quando estabeleceu que todos os comportamento sexo-afetivos que não se ajustavam a heteronormatividade eram degradações de uma “moral pequeno burguesa” e que esses indivíduos eram mais suscetíveis de ser utilizados como infiltrados pela polícia. Por último, existem as correntes que, com fundamentos sindicalistas e economicistas tem ignorado as demandas legítimas dos setores oprimidos ou considerado “algo secundário”.
No entanto, enraizado na classe trabalhadora, a única classe progressiva da sociedade capitalista, o socialismo revolucionário esteve sempre na vanguarda contra os preconceitos moralistas e reacionários, pagos pela igreja no terreno fértil do atraso camponês. Por isso, os socialistas alemães foram os únicos a repudiarem a sentença ao poeta Oscar Wilde, quando foi perseguido pela sua condição de homossexual no final do século XIX ou, no início do século XX, os bolcheviques – ainda condicionados pelas ideias da época – foram os que eliminaram, durante a Revolução Russa, as leis que criminalizavam a homossexualidade. Exemplos de uma tradição que reagiu diante de todas as manifestações de arbitrariedade, para sintetizá-las na denúncia do capitalismo e explicar, então, a importância que adquire a luta emancipadora do conjunto dos explorados, para todos e cada um dos oprimidos, qualquer que seja o setor ou a classe social a que pertençam.
A partir desse ponto de vista, toda conquista parcial – como a maior equidade em direitos civis – adquire uma importância vital se está colocada em função de fortalecer o movimento na luta radical pela libertação sexual que questione essas instituições com as quais a classe dominante também exerce o seu domínio, impondo sua ordem repressiva no mais íntimo de nossas vidas, em nossas identidades e nossos desejos. Renovadas e mais radicalizadas aspirações para um movimento de liberdade sexual cujo último horizonte não seja o pedido de inclusão em uma sociedade não questionada, mas que se proponha varrer todas as normas que hoje ordenam o que pode ser incluído e o que não pode nesta sociedade, para que a liberdade mais radical deixe de ser uma utopia ou o exercício intelectual e solitário de alguns poucos.

Blog das autoras: teseguilospasos.blogspot.com.ar e andreadatri.blogspot.com.ar




[1] Também existe em alguns jurisdições do México e dos Estados Unidos.
[2] Somente nos EUA, de 60 grupos de homossexuais que havia antes de Stonewall, logo se organizaram 1.500; um ano depois eram 2.500.
[3] Citado em David Carter, Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution, Nueva York, St Martin’s Press, 2004.
[4] Durante uma conferência da Associação Norteamericana de Psiquiatria (APA), enquanto se projetava um vídeo sobre o uso de eletrochoque “para reduzir a atração homossexual”, membros do GLF invadiram para denunciar essas “terapias”. Em 1973, APA alterou a classificação da homossexualidade como “desvio sexual” no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e finalmente, a eliminou em 1986. Apenas em 1990, foi retirada, pela OMS, da classificação internacional de doenças mentais.
[5] Carlos Figari, “El movimiento LGBT en América Latina: institucionalizaciones oblicuas”, en Movilizaciones, Protestas e Identidades Políticas  en la Argentina del Bicentenario de E. Villanueva, A. Massetti y M. Gómez, Bs. As., Editorial Trilce, 2010.
[6] Ver Jules Falquet, De la cama a la calle: perspectivas teóricas lésbico-feministas, Bogotá, Brecha Lésbica, 2006.
[7] Ver D’Atri y L. Lif, “A emancipação das mulheres em tempos de crise mundial”, LINK: http://nucleopaoerosas.blogspot.com.br/2013/08/a-emancipacao-das-mulheres-em-tempos-de.html
[8] Néstor Perlongher, “El deseo de unas Islas”, Prosa plebeya, Buenos Aires, Editorial Excursiones, 2013.
[9] Uma minoria significativa do movimento LGBT questiona, nesse sentido, a reivindicação do casamento igualitário e outras demandas similares.

Nenhum comentário:

Postar um comentário