sexta-feira, 3 de abril de 2015

O sistema de saúde público e as identidades trans

SAUDE TRANS

O sistema de saúde público e as identidades trans

A organização Mundial de Saúde (OMS) ainda entende as identidades não cisnormativas como doença, classificando-as como transtornos e disforias. Ainda que a comunidade trans em muitos lugares do mundo como na Argentina já tenha alcançado alguns direitos, de maneira profundamente desigual, na América Latina a perspectiva de vida da comunidade trans não chega aos 35 anos e o Brasil, segundo a ONU, é o líder dos assassinatos contra pessoas trans.

A realidade da comunidade trans pode ser resumida num constante enfrentamento. Em todos os âmbitos sociais é preciso se auto-afirmar e lutar por questões mínimas. No âmbito familiar são raros os casos que conseguem manter bons vínculos familiares, sendo a realidade da maioria de nós a profunda opressão na infância, deslegitimando nossa identificação não correspondente a identidade cis resultando geralmente na expulsão de casa ainda na adolescência.
Na escola, agora se estabeleceu o direito ao nome social sem a necessidade de autorização dos pais, porém, isso não é nenhuma garantia de permanência, pois a ideologia transfóbica segue como correia de transmissão em todos os espaços, na escola sendo orientação das direções e dos currículos escolares. Os trabalhadores das escolas desde os professores até mesmo os auxiliares e os responsáveis pela limpeza não estão preparados para incluir as identidades trans. A proibição do uso do banheiro corresponde a identidade dos alunos (que depois se apresenta como infecções urinarias e outras doenças por não poder realizar tais necessidades por muitas horas), os curriculos escolares que excluem a educação sexual e reproduzem com concepções deterministas biológicas o sexo reprodutivo e heterossexual como correto, os olhares indiscretos, os risos ridicularizantes, os comentários nos corredores e a grande expectativa que reproduzamos apenas a hipersexualização de nosso corpo aumentam as estatísticas de evasão escolar, que já se aproximam de 73%.
O ensino superior é um sonho para algumas, que ainda pensam em concluir os estudos. Ano passado foram apenas 95 pessoas trans que se inscreveram no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Enquanto seguimos com 90% de nossa comunidade jogada na prostituição compulsória. A conquista que as mulheres cisgêneras tiveram, de maneira contraditória, de entrarem no mercado de trabalho, para nós ainda é uma grande batalha. Assim, poderemos nos organizar e assim ter mais formas de combater a transfobia- existindo e demonstrando quem somos - nos nossos locais de trabalho, dentro do movimento operário que reproduz a ideologia dominante e também com a sociedade que só nos vê no submundo das drogas, da prostituição e da miséria.
A saúde como uma questão decisiva na vida das pessoas trans
Combinado a todas as dificuldades sociais para existir, ainda temos que contar com as dificuldades no atendimento na saúde. É verdade que o SUS já há alguns anos avançou para aceitar o nome social e assim garantir a inclusão das identidades trans em seu atendimento. Todavia, o conjunto da saúde ainda segue tratando as identidades trans com profundo preconceito e descriminação.
A construção física do corpo das pessoas trans, ainda que não seja uma obrigação ou condicionante para ser efetivamente uma pessoa trans, é parte essencial da construção de muitas pessoas. A luta que relatei numa crônica sobre depois de dois anos conseguir a autorização para começar minha hormonização é um em milhares de casos, sendo a maioria muito mais tristes do que o meu. Com finais com suícidio como resposta a esta sociedade miserável como foi o de Leelah e tantas outras.
A espera para poder construir nossos corpos, que são verdadeiros campos de batalha cotidianos com este Estado que segue legislando, regulando e reprimindo nosso corpo, não está condicionada apenas a falta de espaços especializados no atendimento. Mas também no processo extremamente burocrático para se conseguir autorização de um médico formado, que possuiu contraditoriamente mais autoridade sobre sua identidade do que nós mesmas. Os laudos e pareces psicologicos são verdadeiras cartas de horrores que desconstroem toda a força, resistência e beleza das identidades trans, normatizando-as e padronizando-as como condição para sua existência.
Mesmo com a necessidade de quatro laudos diferentes correspondentes ao Código Internacional de Doenças (CID) no Estado São Paulo, há uma fila de aproximadamente de 3.200 pessoas que desejam realizar a cirurgia de transgenitalização. A cirurgia é realizada apenas uma vez por mês, isto é, 12 cirurgias ao ano. Quem entrar na fila a partir de agora terá que esperar 266 anos para realizar esse procedimento pelo SUS.
Lutar por uma saúde controlada pelos trabalhadores contra a industria farmacêutica e a medicina capitalista
A particularidade trans denuncia mais a situação lamentável que se encontra a saúde pública no Brasil. São centenas de vídeos, reportagens e relatos pessoais de amigos, vizinhos ou inclusive pessoais que contam a profunda precarização da saúde. Milhares morrem nas filas todos os anos e muitos vivem com sequelas em decorrência da lógica capitalista que não concebe uma medicina totalizadora, mas sim fragmentada, onde cada especialista não se responsabiliza para os efeitos colaterais de suas "milagrosas soluções" receitadas.
A vulnerabilidade das travestis e pessoas trans tendo em vista as precárias condições para se hormonizar, para colocar próteses - recorrendo infelizmente ainda hoje ao silicione industrial - e a profunda instabilidade psicológica fruto da opressão estrutural que vivemos combinada aos traumas de violência, estupro e outros abusos faz com que a saúde seja uma das questões decisivas para nossa vida.
A saúde de hoje, assim como os pesquisadores e as universidades, não possuem nenhum comprometimento com nosso bem estar. Pelo contrário, em conluio com o tráfico ilegal de medicamentos e com os acordos legais com grandes industrias farmacêuticas, a saúde não é nada além de mais uma grande industria extremamente lucrativa. Nossa autonomia é controlada pela restrição do conhecimento que nos é imposta, tendo de aceitar passivamente muitas vezes os laudos, as conclusões e as soluções médicas (parte também definidas pelo tipo de convênio ou os recursos do SUS).
Por isso, para a comunidade trans seguimos na luta pela aprovação da Lei João Nery e para que a nossa identidade não seja mais reconhecida como doença ou disforia. Todavia, sabemos que estes são apenas pequenos passos para atingirmos uma saúde que verdadeiramente nos possibilite chegar a mais de 35 anos. É preciso que quem controle o sistema de saúde sejam os médicos, enfermeiros e demais trabalhadores que estejam preocupados com a população, em especial as mulheres (cis e trans). Para isso é preciso acabar com a saúde privatizada, se enfrentando com a industria farmacêutica e levantando com alto e bom som a defesa de uma saúde pública, gratuita e de qualidade.

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