A partir do estourar da crise mundial em 2008, temos
presenciado cada vez maiores embates entre um ou outro direito obtido pelxs
homo e TRANS* e a virulência com a qual os setores mais reacionários da
sociedade respondem. Essa situação tem evidenciado o engodo propagado por
vários anos de que a nossa emancipação se daria pela via de conquistas
progressivas e acumulativas de direitos com a “ampliação da cidadania” dentro
dos marcos do atual Estado capitalista. O aumento dos índices de assassinatos
de homo e TRANS*, a situação de vida miserável na qual são lançadxs xs
LGBT e as mobilizações de massas organizadas pelas Igrejas e políticos
conservadores contra projetos de legalização do matrimônio igualitário
escancaram que, dentro desse sistema social, econômico e político, os pequenos
direitos conquistados estarão sujeitos aos cortes e ajustes que os governos e
instituições financeiras internacionais imponham como também aos vai-e-vens das
relações de forças sociais. O governo Dilma, do PT, já não consegue mais
esconder que por trás de discursos supostamente “progressistas” se encobrem
compromissos com setores direitistas e concessões às bancadas moralistas que
visam reforçar o controle social à custa da retirada de liberdades
democráticas.
A primavera do
movimento sexual.
Anos 60 e 70, os
primórdios da luta pela libertação sexual.
Encontrando-se nos limites do crescimento econômico parcial
proporcionado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e desiludida com as
perspectivas de futuro em um mundo polarizado entre um capitalismo que não
apresentava qualquer nova esperança e um socialismo degenerado pelo stalinismo
em uma ditadura burocrática contra xs trabalhadorxs e setores oprimidos, a
juventude se radicaliza internacionalmente nos finais da década de 60 e toma as
ruas contra a crise econômica, contra a guerra do Vietnã, contra o arrocho de
vida, contra a moral e os costumes conservadores e contra a ordem social e
cultural vigente.
Em várias partes do mundo essa explosão de indignação e questionamento da juventude se liga com as demandas econômicas e políticas da classe operária e da maioria da população, originando ascensos revolucionários de massas. Esse processo invade a vida privada e revira as roupas de cama, mesa e banho da família nuclear burguesa, entorna os vinhos e champanhes no chão da sala de jantar e enfia as mãos até os cotovelos nos cestos de peças íntimas retirando, fétidas, peça por peça de toda a moral cristã apodrecida e de sexualidade conservadora e miserável da família tradicional.
É nesse contexto que o movimento pela libertação sexual sai
do “armário” imposto pela repressão, irrompendo na cena mundial com as
barricadas de Stonewall e a visibilidade “orgulhosa”. Entre a defesa
intransigente das travestis, trans e homossexuais do espaço do bar Stonewall
contra as violentas e cotidianas batidas policiais e as passeatas e organização
em torno da afirmação identitária e sexual sobre ser “gay” e “lésbica”, xs homo
e TRANS* travavam um combate à família tradicional, ao par heterossexual
monogâmico e a todas as relações intersubjetivas que eles engendravam,
marchando em defesa do amor livre e da vida comunitária. Colocavam a luta pela
livre expressão da sexualidade como parte da luta em defesa do direito à mente
e ao corpo, pela defesa do direito à maternidade e ao aborto.
Compreendiam a família tradicional como uma reprodução em menor escala do Estado capitalista, fonte da educação e reprodução dos valores da sociedade patriarcal e normativa, combatiam na linha-de-frente a miséria sexual que assolava a humanidade de conjunto e por isso mesmo faziam de sua luta uma luta política contra as bases do sistema capitalista. A luta pela liberdade social era vista dentro do movimento pela libertação sexual como condição primordial para a conquista dessa libertação. Nessa perspectiva xs homo e TRANS* se organizavam para combater tanto a ordem capitalista quanto o controle férreo da burocracia stalinista nos Estados Operários.
Em 28 de junho de 1969, em Nova York, no bar StonewallInn,
xs homo e TRANS* afro-americanos e porto-riquenhos resistiram às investidas
repressoras da polícia se organizando para defender seu espaço e em 1970 a
organização "Frente de Liberação Gay (GFL)" surgida nesse processo
participava da Convenção Revolucionária organizada pelos Panteras Negras.
Antes, em 1º de novembro de 1968, durante a ditadura militar na Argentina,
surgia no subúrbio operário de Buenos Aires o primeiro grupo político-sexual da
América Latina, “Nuestro Mundo”. Dirigido por um sindicalista comunista expulso
do PC por ser homossexual, este grupo atuou na clandestinidade até se fundir
com outros grupos em 1971 na “Frente de Liberación Homosexual (FLH)” lançando o
Manifesto “Sexo y Revolución”. Na sequência dos processos que em maio de 1968
sacudiram a França, no qual xs estudantes universitárixs foram até as fábricas
se ligar com xs operárixs em greve para paralisar o país, surgiria a
"Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR)", com o objetivo de
organizar xs trabalhadorxs e xs homo e TRANS* para uma revolução política,
social e sexual. Em 1º e maio de 1971, no Dia do Trabalhador, a FHAR desfilava
ao lado dx soperárixs com uma faixa “Abaixo a ditadura dos normais!” e buscava
se ligar com as organizações partidárias da extrema-esquerda, como as
trotskystas, na perspectiva da revolução:
“Para nós, a luta de classes passa também pelo corpo. O que significa
que nossa recusa em suportar a ditadura da burguesia está libertando o corpo
dessa prisão, que durante 2 mil anos de repressão sexual, de trabalho alienado
e de opressão econômica foi sistematicamente fechado. Então, não existe nenhuma
possibilidade de separar nossa luta sexual e nosso combate cotidiano pela
realização de nossos desejos, de nossa luta anticapitalista, de nossa luta por
uma sociedade sem classes, sem mestre, nem escravo.”
Dezesseis grupos de dez países irão formar a Internacional
Homossexual Revolucionária (IHR). Pela primeira vez na história, o
questionamento da repressão sexual buscava a superação da sociedade do capital,
se ligando com a classe operária em uma perspectiva revolucionária e
internacional.
O outono do movimento
sexual.
Anos 80 e 90, os
primórdios do neoliberalismo, da cooptação e da restauração burguesa.
As organizações criadas pela classe operária, como os
partidos social-democratas e comunistas, e até mesmo os sindicatos e os Estados
Operários burocratizados, porém, não impulsionaram esse processo convulsivo de
greves selvagens e intensos debates no meio revolucionário sobre amor-livre e
combate a todas as formas de opressão. Pelo contrário, atuaram como freios do
ascenso revolucionário de massas e como agentes da implementação das medidas
que reconfigurariam pelos próximos 30 anos o domínio capitalista pela via da
fragmentação dxs trabalhadorxs com o neoliberalismo. Essa situação desmoralizou
politicamente das massas à vanguarda e endossou um ceticismo profundo sobre a
possibilidade da transformação social pela via da organização e direção
revolucionária da classe trabalhadora. A desorientação e fragmentação anterior
da esquerda revolucionária com o fim da Segunda Guerra Mundial impediu que uma
direção consequente canalizasse todo esse rico processo dos anos 60 e 70 e a
classe dominante conseguiu se sustentar pela via do avanço sobre os Estados
operários burocratizados pelo stalinismo, por meio do crescimento das formas de
regime democrático capitalista incluindo a participação da classe média e de
setores privilegiados da classe operária e envolvendo os movimentos sociais e
subversivos da moral e dos costumes sob a tutela e institucionalização do
Estado.
Exatamente assim se procedeu com o subversivo movimento pela
libertação sexual. A incorporação de algumas demandas de igualdade sexual na
pauta de políticas públicas do Estado visando à cidadania cooptou uma parte
significativa dxs homo e TRANS* da pequena-burguesia que tiveram a porta aberta
ao consumismo, ainda que em guetos voltados para sua orientação sexual
“dissonante”. A consolidação de um mercado gay e a exaltação do indivíduo tendo
sua realização no consumo firmaram as bases do “pinkmoney” e permitiu que a
classe dominante quebrasse ao meio o movimento pela libertação sexual. Enquanto
isso, os setores homo e TRANS* da classe trabalhadora padeciam na
marginalização, no aumento dos índices de desemprego, na proliferação da
pobreza, da violência policial, no aumento da exploração nos postos de
trabalhos precarizados, na prostituição e na degradação social e também,
sexual, a partir da restrição de sua satisfação e práticas sexuais ao
esconderijo, sujeito a ambientes insalubres, perigosos e anti-higiênicos.
O divórcio da classe operária, encabeçado pelas suas
direções, com os movimentos sociais se consumou e o movimento homo e TRANS*
abandonou a luta contra a ordem social e moral que o capitalismo impõe e se
contentou em pressionar as instituições do Estado por um “aumento de cidadania”.
A classe dominante pôde então avançar ainda mais contra os setores oprimidos,
ao ponto da primeira política pública do Estado aplicada axs LGBT ter vindo
diretamente da pasta de saúde pública com a ofensiva da epidemia da AIDS. O
extermínio de milhares de homo e TRANS*, o isolamento, o medo, a estigmatização
e a patologização da prática homoafetiva submeteu o movimento LGBT ainda mais
de joelhos perante um Estado que, pautado pela opinião pública por ele mesmo
edificada, marginalizava xs homo e TRANS* como problema de saúde pública. Nesse
período difícil para xs LGBT's, o refúgio nas ONG’s e nas mendicações ao Estado
aprofundou ainda mais a institucionalização do movimento e sedimentou as bases
da estratégia que viria a pautar o movimento LGBT a partir de então: a busca de
direitos e do “aumento da cidadania” a partir de políticas públicas e da
pressão por dentro das secretarias e comissões do Estado e dos lobbys
parlamentares.
Por uma saída
revolucionária para nossa sexualidade!
A revolução, ainda
hoje, é uma condição fundamental para nossa emancipação.
Os longos anos de neoliberalismo aprofundaram um
distensionamento na busca por uma estratégia capaz de alcançar a emancipação de
nossa sexualidade. O que ficou conhecido como “grau zero de estratégia” nos
anos reacionários, onde se restauraram o capitalismo nos ex-estados operários e
se construiu uma forte ideia de triunfo do capitalismo, “fim da história” e
“fim da classe trabalhadora”, foi responsável pelas diversas analises que hoje
fundamentam o movimento LGBT/Queer.
Essa derrota objetiva, ligado ao fato do marxismo clássico e dos marxistas revolucionários que o sucederam não terem desenvolvido nenhuma tese ou contribuição à libertação sexual, com foco na opressão sofrida pelos LGBT, abriram o caminho para a construção de uma estratégia de emancipação pelos setores reformistas ou pós-modernos, sem lançar luz a partir das ferramentas do marxismo, no sentido da emancipação revolucionária de toda forma de sexualidade e identidade de gênero. O stalinismo, de forma mais completa, traiu a luta dos setores oprimidos e garantiu uma ampla influência em diversos partidos comunistas do mundo de invisibilizar e não oferecer nenhuma alternativa para os que mais sofrem com a sexualidade não-heterossexual e as identidades TRANS*. A identificação errônea do stalinismo com o socialismo foi a grande responsável pelo abandono dessas ferramentas pelxsLGBT's.
A cisão dos movimentos sociais com a luta dos trabalhadores costurada nesses anos que chamamos de restauração burguesa garantiu o surgimento de uma tendência dentro do movimento LGBT que tem grandes pensadores que a representam, sendo ainda hoje muito referenciados: Foucault e Judith Butler, como principais símbolos.
A teoria Queer e toda uma “onda” do trans-feminismo hoje se pautam pela visibilidade (luta por ganhar espaços midiáticos e impor um reconhecimento social) e pelo idealismo, que retorna a Hegel, Austin e outros teóricos, para afirmar que “a linguagem determina a vida” e a ideia de “poder da fala”. Se por um lado há que se reconhecer como um progresso a visão difundida de que a construção da identidade de gênero e da sexualidade são frutos da sociedade em que vivemos, por outro, esta alternativa descolada da materialidade e das relações sociais nos parece um grande retrocesso estratégico na luta por nossa emancipação. Isto é, nossa assimilação do que somos, nossa construção individual, não pode se desligar das condições materiais que partimos para construí-las, da sociedade de classes, das variadas combinações de opressões e da ordem heteronormativa, binária e transfóbica a que somos bombardeados. Isso não deve nos levar a lógica de que somente os LGBT são oprimidos por sua sexualidade e identidade de gênero, mas sim que toda repressão sexual é fruto de uma necessidade objetiva do capitalismo de dominar nossos corpos e mentes para avançar na sua exploração, isso pode ser identificado na sexualidade reprodutiva que a maioria dos trabalhadores possuem, de maneira compulsória, sem ter conhecimento sobre o próprio corpo, deixando para as mulheres trabalhadoras a responsabilidade materna, sem a permissão de sentir prazer e construir sua identidade livremente.
Se, por um lado, a teoria Queer combate a reacionária visão
de determinismo biológico (onde muitos LGBT se apoiaram num combate defensivo a
ideologia da AIDS como “doença gay”), onde a biologia determinaria 100% nossa
sexualidade e nosso gênero (impossível de ser re-construído) – o que serve de
base para visões conservadoras e religiosas de patologização das identidades
TRANS* e da sexualidade não normativa (sem fins reprodutivos), por outro, joga
xs LGBT numa deriva estratégica, que em última instancia deposita no Estado
ilusões de reformas progressistas, em geral pela via da reeducação da qual o
pós-modernismo se debruça a construir a partir de uma contra-cultura.
Ainda que reconheça a sociedade capitalista, o
pós-modernismo em suas mais variadas correntes de pensamento, não analisa os
pilares do sistema capitalista buscando destruí-los para erguer uma sociedade
comunista, onde sejamos verdadeiramente livres e possamos desconstruir e
construir livremente nossas expressões e identidades. Por isso, para além da
produção teórica – que sem dúvida cumpre um papel chave de combate a ideologia
dominante que segue vigente nas universidades burguesas produtoras das mais
variadas opressões - a revolução ainda segue como condição fundamental para
nossa emancipação. A Revolução Russa – sobre a qual nos apoiamos –, que em 1918
já garantia a liberdade sexual (legalizando a homossexualidade), demonstra que
mesmo as democracias capitalistas mais avançadas de hoje, ainda não podem
garantir sequer o fim das padronizações para não se desvincular do “mercado
rosa” (Pink Money), um nicho de mercado voltado ao público LGBT pequeno burgues
ou diretamente burgues, que mantém "até onde se tolera" xs LGBT nos
marcos do regime. O mercado rosa é uma das variadas formas de
"inclusão" que amplos setores reivindicavam como medida progressiva
de inclusão social dxs LGBT, que, no entanto, só expressa como apenas uma
pequena parcela pode ser incluída, determinada novamente pelo caráter de
classe.
É também lição da revolução russa, de que a transformação
das bases econômicas não garantirá de imediato a nossa emancipação. Todavia, a
revolução segue como condição para libertar todos os países da lógica
capitalista de consumo, propriedade e de reprodução da família como regra, para
permitir que revolução avance em todos os níveis, que destrua os pilares que perpetuam
o machismo, o racismo e a homo-lesbo-transfobia. Sendo o capitalismo herdeiro
último da sociedade patriarcal dividida em classes, é necessário defender
fortemente a sua destruição internacional para que permita erguer-se uma nova
sociedade baseada na relação de produtorxs e reprodutorxs livres, o que só é
possível com uma política internacionalista também no âmbito da sexualidade.
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