Andrea D’Atri –
Especialista em Estudos da Mulher
Celeste Murillo
– Comitê de Redação
A Argentina é um
dos dezesseis países do mundo – o primeiro na América Latina – que aprovou o
casamento entre pessoas do mesmo sexo – ainda que a lei tenha sofrido vários
tropeços antes de ser votada no Senado, em julho de 2010, por uma pequena
diferença e depois de muitas horas de debate.
A crise que
começou em dezembro de 2001 – com o surgimento de movimentos de desempregados,
assembleias de bairro e fábricas ocupadas por trabalhadores – colocou também as
demandas do movimento de mulheres e do movimento LGBT na mesa. A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo foi uma dessas bandeiras e, em 2012, a cidade de Buenos
Aires estabeleceu o regime de união civil na sua jurisdição. Logo, inúmeras
organizações nucleadas na Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Trans, privilegiaram estratégias jurídicas e parlamentares, limitando a
crescente mobilização da comunidade LGBT a pressão pela lei do matrimônio
igualitário. Então, o que poderia ter sido um grande ponto de partida para
fortalecer a luta LGBT, logo se tornou um teto.
Mas, apesar de
suas limitações, o debate da lei não só beneficiou a vida de um setor da
comunidade de gays e lésbicas, permitiu sua visibilidade e uma crescente
aceitação social da condição da homossexualidade, mas também, além disso, impulsionou
um “espírito igualitário” em amplos setores das massas. Os meses em que a lei
tramitou no Congresso, a classe trabalhadora e a juventude debateram nas
fábricas, escolas e escritórios, enfrentando velhos preconceitos e mostrando
que os 70% de aprovação que tinha o projeto não foi uma invenção dos
pesquisadores. Dois anos depois a Lei de Identidade de Gênero foi aprovada, lei
fundamental para avançar na equidade de pessoas transexuais. Porém, logo ficou
claro que a igualdade perante a lei não é ainda a igualdade perante a vida e
que, tanto no ambiente de trabalho como no da saúde, ainda persiste a
discriminação.
Essas
experiências – que merecem uma análise própria, que não é o propósito desse
artigo – concentraram, em curto tempo, as lições de quatro décadas do movimento
de libertação sexual: demandas, alinhamentos estratégicos e um desvio na
cooptação que nos propomos a examinar criticamente.
Stonewall e o surgimento do movimento de liberdade sexual
A radicalização
das massas que se estendia desde o final dos anos 60 até o início dos anos 80,
se expressou também no caráter anticapitalista sustentada por amplos setores
dos movimentos sociais que, nesse mesmo período, questionavam todos os aspectos
da vida.
Em meados de
1969, a batida policial no bar Stonewall parecia uma a mais das habituais em
Greenwich Village de Nova Iorque, mas desta vez não acabou como sempre: gays,
lésbicas e travestis se enfrentaram durante três dias com as forças repressivas
dando origem, apenas uma semana depois, para a formação da Frente de Liberação
Gay (GLF). Esta coalizão, que reunia pela primeira vez, todas as organizações
existentes, logo se espalhou por várias cidades dos EUA e abriu o caminho para
a criação de outras agrupações e alianças em muitos países.
As barricadas de
Stonewall foram um ponto de viragem. Três anos antes, em outro bar de Nova
Iorque, havia sido desafiada a proibição do governo em servir bebidas
alcoólicas a homossexuais e, em 1967, na mesma cidade, abria suas portas a
livraria Oscar Wilde, a primeira do mundo destinada a leitores homossexuais.
Mas em Stonewall bastou que uma lésbica, enquanto era arrastada, gritasse à
multidão “Por que não fazem algo?” para que a faísca incendiasse o bairro
inteiro.
Um ano mais tarde, a comemoração organizada pela GLF em Nova Iorque reuniu
quase dez mil pessoas. Outras manifestações recorreram às ruas de Los Angeles e
São Francisco, e o movimento assumiu a luta pela liberdade dos presos
políticos, contra a guerra do Vietnã, contra o racismo, etc.
Nos primeiros
anos da década de 70 a homossexualidade foi discriminalizada em quase todos os
países do Ocidente, ainda que continuasse considerada uma patologia.
Como destaca Carlos Figari:
O movimento homossexual começou a levantar como
problemas a considerar na agenda política valores de sua vida cotidiana, tornar
público o privado, se auto afirmar como sujeitos homossexuais na sociedade.
Este último supunha uma reversão identitária na categoria de interpelação
definida como homossexual, que, do termo médico para classificar uma
enfermidade passou a ser uma categoria política afirmativa da diferença.
As identidades
que haviam sido discriminadas e perseguidas se levantavam com orgulho,
questionando todas as instituições que reprimiam a sexualidade, buscando novas
formas de relacionar-se sexo-afetivamente e desafiando os preceitos morais que
os condenava a marginalização. O resultado foi a conversão da rebeldia em
política de identidade, para a exigência de maiores direitos. Contudo, essa
rebelião, que atravessou fronteiras e gerações, tornou possível que se suscitasse
muitas mudanças impensáveis pouco tempo antes para gays e lésbicas.
A “peste rosa”, a reação conservadora e os direitos civis
No final dos
anos 70, a direita cristã começou a se organizar contra os crescentes
movimentos feministas e de liberdade sexual. Floresceram os grupos “pró-vida” e
“pró-família” que sustentaram o modelo de casais heterossexuais monogâmicos e o
rechaço ao direito ao aborto. Em 1978, o cardeal Karol Wojtyla assume o papado,
que colocou um forte caráter neoconservador à política do Vaticano, não somente
na luta “contra o comunismo”, mas também contra a legalização do aborto, que
tinha sido alcançado em muitos países, e outros direitos conquistados pelo
movimento de mulheres e pelo movimento de libertação sexual. Mas um dos golpes
mais duros que a comunidade homossexual recebeu chegou a meados de 1981, quando
o Centro para Prevenção e Controle de Doenças dos EUA anunciou o
desenvolvimento de alguns casos de pneumonia associado com o sarcoma de Kaposi.
A maioria dos enfermos eram homossexuais e morreram em poucos meses, o que foi
o suficiente para espalhar o pânico na comunidade gay, que foi estigmatizada
brutalmente e que provocou uma verdadeira “caça às bruxas”
Aquela
solidariedade que a comunidade homossexual havia conquistado de amplos setores
sociais e políticos, começava a se liquefazer ao passo que se estendia a
pandemia e a discriminação que surgia dos preconceitos e medo, incutido pela
ignorância e os grupos reacionários.
A restauração
conservadora, encabeçada por Reagan e Thatcher, com altas taxas de desemprego,
privatizações e cortes do gasto público, aumento da espoliação dos países semicoloniais
com as dívidas externas e a queda da União Soviética, foi acompanhada pela
propaganda reacionária da “peste rosa”, que atuou como disciplinador daquele
movimento que, no final dos anos 60, havia emergido questionando a
heteronormatividade, a monogamia e a família patriarcal.
Somente em 1987
foi lançado o primeiro programa global de combate a AIDS: levou quase uma
década para estabelecer a origem do vírus, descobrir medicamentos para o
tratamento da infecção e ter um conhecimento mais preciso sobre as vias de
contaminação. Durante toda essa década, o movimento de libertação gay centrou
seus maiores esforços na prevenção da infecção, na difusão da informação
científica e em ajudar as pessoas infectadas. E junto com esta nova atividade
foi adquirindo outra fisionomia: surgem ONGs financiadas por agências
internacionais, empresas e diversos organismos estatais. Por exemplo, a
Associação Lésbica e Gay Internacional (ILGA), fundada em 1978, multiplica de
maneira crescente seus membros em todo o mundo, se convertendo em uma das
maiores ONGs, e centra sua atividade nas conferencias mundiais da ONU onde,
para 1993, consegue o status de membro consultivo (que perde em 1995 e recupera
em 2011 até o presente).
Os fundos
internacionais para o “combate a AIDS” deram maior visibilidade e poder aos
grupos de homens homossexuais. Lésbicas feministas, negras e de países do
chamado “Terceiro mundo”, fizeram ouvir sua voz denunciando a invisibilidade e
subordinação das mulheres no movimento de libertação homossexual misto. Também
disseram que não se sentiam representadas pelas porta-vozes brancas, de classe
média e de países centrais, a quem questionavam suas concepções
“essencialistas”. Distintos ativistas do movimento gay-lésbico tem questionado
essa contradição, segundo a qual, ao mesmo tempo em que se desenvolvia o
movimento a nível internacional, se aprofundava as necessidades de apenas um
setor de melhor posição social e econômica que reivindicava por direitos civis,
inclusão de novos padrões de consumo e “tolerância”.
A
institucionalização sob o “flagelo” da AIDS, e as políticas de identidade,
questionadas pelos setores mais invisibilizados e subordinados, levaram a
crises, rupturas e rachas que levaram a uma reconfiguração do movimento. O
caminho que o feminismo atravessou durante essas décadas encontra um paralelo
com o movimento de libertação sexual.
Por um lado, líderes da comunidade gay se transformaram em uma nova
“tecnocracia” administradora de abundantes financiamentos e dedicada ao lobby político nacional e internacional
para a regulação e o estabelecimento de legítimos direitos civis, que não
questionavam a ordem imposta pelas democracias capitalistas, mas exigiam a
inserção nela. Por outro lado, uma pandemia – que não somente afetava aos
homossexuais, mas também e fundamentalmente a mulheres heterossexuais de
populações vulneráveis, pobres e em sociedades onde prevalecia uma cultura
patriarcal – que se tornou a desculpa para lançar ao fogo da discriminação, do
desprezo e da marginalização milhões de gays, lésbicas e transexuais,
especialmente os mais pobres. Nesses anos, Nestor Perlongher se perguntava
sobre essa questão:
...pode-se
perguntar até que ponto a assunção da identidade não pode implicar as vezes a
domesticação – por via da normatização -, da adaptação a um determinado modelo
de certa cotidianidade transgressiva.
Como aconteceu
também no movimento feminista, a política de identidade –questionada por impor
uma homogeneização essencialista que funciona como um disciplinador do grupo que
não só descreve mas que também prescreve - conduziu a despolitização do
movimento de libertação sexual que se transformou no movimento LGBT, sigla que
varia em função de novas identidades dissidentes da heteronorma que vão se
configurando e reconhecendo. O que seguiu, foi a política queer, que fez
estourar pelos ares as múltiplas identidades para salientar que o mais
subversivo era resignificar ou parodiar os gêneros impostos pela hetorossexualidade
compulsória e não se ancorar em uma identidade que é sempre coercitiva,
normativa e repressiva.
O movimento teve
uma deriva equivalente ao que também teve o feminismo; desde as barricadas de
Stonewall e a intempestiva intervenção de rua daquelas pessoas que tinham tido
negado seus direitos mais mínimos à existência civil, até a intervenção
subjetiva, hormonal, cirúrgica ou artística sobre o próprio corpo, para
rebelar-se contra a ordem binária dos gêneros que impõem a linguagem e a
cultura heteronormativas.
Ali, por fora da
própria subjetividade, onde as democracias capitalistas continuam funcionando
como um fetiche que esconde, sob a igualdade perante a lei, as mais brutais
desigualdades da exploração e opressão que existem na vida, o movimento LGBT se
limita a reivindicação de uma maior inclusão que, ao mesmo tempo que é
alcançado, domestica suas arestas mais revulsivas.
Defender todos os direitos, questionar tudo
Neste cenário,
as correntes de esquerda não tem atuado de forma homogênea. Existem correntes
que, de forma acrítica, seguem repetindo as demandas dos movimentos sociais se
adaptando a seus limites, sem levantar uma perspectiva anti-capitalista e
revolucionária para as lutas pela liberdade sexual. Outras tem reproduzido as
perseguições mais terríveis de gays e lésbicas dentro de suas próprias
fileiras, instauradas pelo stalinismo já nos anos 30, quando estabeleceu que
todos os comportamento sexo-afetivos que não se ajustavam a heteronormatividade
eram degradações de uma “moral pequeno burguesa” e que esses indivíduos eram
mais suscetíveis de ser utilizados como infiltrados pela polícia. Por último,
existem as correntes que, com fundamentos sindicalistas e economicistas tem
ignorado as demandas legítimas dos setores oprimidos ou considerado “algo
secundário”.
No entanto,
enraizado na classe trabalhadora, a única classe progressiva da sociedade
capitalista, o socialismo revolucionário esteve sempre na vanguarda contra os
preconceitos moralistas e reacionários, pagos pela igreja no terreno fértil do
atraso camponês. Por isso, os socialistas alemães foram os únicos a repudiarem
a sentença ao poeta Oscar Wilde, quando foi perseguido pela sua condição de
homossexual no final do século XIX ou, no início do século XX, os bolcheviques
– ainda condicionados pelas ideias da época – foram os que eliminaram, durante
a Revolução Russa, as leis que criminalizavam a homossexualidade. Exemplos de
uma tradição que reagiu diante de todas as manifestações de arbitrariedade,
para sintetizá-las na denúncia do capitalismo e explicar, então, a importância
que adquire a luta emancipadora do conjunto dos explorados, para todos e cada
um dos oprimidos, qualquer que seja o setor ou a classe social a que pertençam.
A partir desse
ponto de vista, toda conquista parcial – como a maior equidade em direitos
civis – adquire uma importância vital se está colocada em função de fortalecer
o movimento na luta radical pela libertação sexual que questione essas
instituições com as quais a classe dominante também exerce o seu domínio,
impondo sua ordem repressiva no mais íntimo de nossas vidas, em nossas
identidades e nossos desejos. Renovadas e mais radicalizadas aspirações para um
movimento de liberdade sexual cujo último horizonte não seja o pedido de
inclusão em uma sociedade não questionada, mas que se proponha varrer todas as
normas que hoje ordenam o que pode ser incluído e o que não pode nesta
sociedade, para que a liberdade mais radical deixe de ser uma utopia ou o
exercício intelectual e solitário de alguns poucos.
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