sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Transcidadania: Uma peneira para tampar o Sol cada dia mais quente?

No último dia 20, conclui-se o primeiro ciclo do projeto Transcidadania. Há um ano dessa experiências, comprovaram-se os avanços e os limites desta política.



No último dia 20, ocorreu a primeira formatura do projeto Transcidadania. O programa da prefeitura de São Paulo forneceu 100 bolsas para travestis e transexuais no valor de R$ 840,00 para concluírem os estudos e busca a "ressocialização no mercado de trabalho" como alternativa a prostituição compulsória. Das 100 beneficiadas, apenas 33 concluirão o ensino fundamental e cinco o ensino médio. Entre elas, duas prestaram o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e puderam concorrer a vagas nas universidades ou a bolsas do programa PROUNI. Há um ano escrevíamos sobre o lançamento deste projeto, hoje podemos retomar os questionamentos que nos fazíamos dos avanços e dos limites desta política pública frente a transfobia estrutural do capitalismo brasileiro.

Sendo uma das políticas mais avançadas no país para a população trans, o primeiro questionamento que podemos nos fazer é: o objetivo de combater a evasão escolar e a conclusão do ensino básico foi superada? Obviamente, que não. Se já apontávamos que o problema estava presente na ausência de uma reforma estrutural na educação para garantir a inclusão das pessoas trans, respeitando não apenas seu nome social e o direito ao uso dos banheiros correspondentes a sua identidade de gênero, mas também garantindo o debate sobre a sexualidade não heteronormativa e das identidades de gênero não cisgêneras promovendo a inclusão e o combate as opressões tão reproduzidas no ambiente escolar. O que se comprovou é que nem com esta política especializada, foi possível garantir a conclusão de todas as participantes.

Importantes limites para garantir uma cidadania para as pessoas trans

Num país recorde de assassinatos de pessoas trans com uma direita tão raivosa que já tentou aprovar projetos arqui-reacionários como a "Cura Gay" e o "Estatuto do Nascituro" (conhecido como "Bolsa Estupro"), que tenta a todo o tempo legitimar a violência contra as mulheres e se manifesta abertamente contra os LGBT, inclusive incentivando a violência como foi o discurso de Levy nos debates eleitorais em 2014, não se pode ter dúvida alguma que a luta por direitos básicos para as pessoas trans é uma dura batalha. Por isso, a luta dos setores LGBT e dos que lutam pela libertação sexual sempre deve partir de um enfrentamento mortal com esses políticos reacionários agentes da burguesia mais sanguinária que não quer garantir a mínima dignidade e condições de vida para a população trans. Todavia, esse combate frontal não pode impedir estes mesmos movimentos de ter uma leitura crítica e correta sobre as medidas parciais e os limites que se depararam para garantir a cidadania.

Na Cerimonia de formatura do projeto Transcidadania, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT) se pronunciou dizendo que “Em um momento em que ameaçavam propagar o preconceito e a intolerância, nós dissemos que não vamos permitir isso em São Paulo. Com esse programa, anunciamos a todas as pessoas que ninguém ficará para trás” e continuo “O Transcidadania educa toda a sociedade para a diversidade”. Mas infelizmente, esta não é a realidade. Foram computados pelos movimentos LGBT e transfeministas 56 assassinatos de pessoas trans apenas em 26 dias de 2016. Quase o dobro de pessoas comparado ao número de pessoas trans formadas neste primeiro ciclo. Muito longe de educar a sociedade, os dados demonstram que a violência, as agressões e os assassinatos aumentaram brutalmente. Se foram 8 pessoas trans assassinadas no primeiro mês de 2015, são 48 amais que perderam suas vidas. O Estado, a Igreja e o Congresso Nacional são responsáveis.

Segundo a declaração do prefeito “Imagine uma pessoa que há um ano agarrou a primeira oportunidade que teve. Passados 12 meses ela deixou uma condição de vulnerabilidade e agora pode decidir sobre o seu futuro em uma universidade” é como se a educação básica pudesse apagar todas as desigualdades sociais, garantir a "cidadania" mesmo que para conseguir os documentos oficiais com o nome correspondente a identidade seja quase impossível, como senão houvesse uma barreira social para conseguir emprego formal, como se a saúde não considerasse as identidades trans como doenças mentais e obrigasse que médicos e psicologos digam com mais autoridade do que as próprias pessoas trans. Haddad parece não conhecer realmente a realidade da população trans que vive mais de 90% na prostituição compulsória.

Na contramão de garantir a cidadania para as pessoas trans, o PT de Fernando Haddad fez acordos com a bancada evangélica levando Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos em 2013, dando a este uma visibilidade muito maior do que a que tem as mortes que chocam até mesmo os órgãos internacionais de direitos humanos. Um governo que em 13 anos não deu nenhum passo sério na garantia de direitos, não cumpriu as promessas eleitorais de propor a criminalização da homo-lesbo-transfobia, vetou o kit-antihomofobia impedindo efetivamente um combate a evasão escolar e reprodução do preconceito nas escolas. É o mesmo partido que se diz progressista, mas não se pronunciou sobre a prisão e torturas de Verônica Bolina, que assistiu calado os assassinatos de Kaique Augusto, Marcus Vinicius e de Laura Vermont. É o governo que abraça o Papa quando vem para o Brasil, mas nada faz para garantir a separação da igreja do Estado, nem o direito ao aborto legal, seguro e gratuito ou a Lei João Nery, tão necessária para começar a se falar em cidadânia.

Nenhuma trans a menos! Pelo direito ao Pão, mas também as rosas!

A previsão para este ano da Coordenação de Políticas LGBT da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania é de ter um orçamento de R$ 8,8 milhões, bem maior comparado ao R$ 3,8 milhões em 2015, destinado para o segundo ano do Transcidadania. Pretendem dobrar o número de vagas, de 100 para 200, e o valor da bolsa aumentará para pelo menos R$ 910, conforme anunciou Haddad durante a cerimônia de formatura. Tudo isso, sem dúvida alguma, são direitos que defendemos e causam grande repercussão e polarização social. Enquanto a direita LGBTfóbica vomita absurdidades como faz Cunha, Feliciano e Bolsonaro, nós dizemos que nenhum direito a menos vamos permitir.

Porém, em momento algum acreditamos nas palavras de "ninguém fica pra trás" se em menos de um mês 56 travestis e transsexuais ficaram não apenas "para trás", mas direito a vida, e há muitas, sem direito ao luto para a família, sem direito de ter seus nomes e suas identidades respeitadas, sem direito ao futuro. Se o PT realmente quisesse um futuro para as pessoas trans, deveria começar garantindo o direito ao emprego, acesso irrestrito a universidade, criminalização da LGBTfobia, ampliação dos ambulatórios trans com mais contratação de endocrinologistas, psicólogos e demais profissionais da saúde para este atendimento.

Se em um ano deste projeto podemos tirar conclusões, poderíamos dizer que em primeiro lugar, não podemos deixar de relacionar este projeto com o veto ao Kit Anti-Homofobia, uma vez que essa medida parcial se choca diretamente com um problema estrutural da educação que segue sendo a corrente de transmissão da ideologia burguesa homofobica e transfóbica. Justamente por isso, as limitações que apontávamos, se confirmaram. E que é preciso ir por mais, sem alimentar ilusões em políticas públicas isoladas, por mais bem intencionadas que sejam, também. Para as 38 participantes foi sem dúvida uma grande mudança na vida, todavia, não paga a dívida de todos os anos de opressões e humilhações que passaram e tampouco as protege da triste perspectiva de 35 anos. Segue então, a roleta russa na mira da população trans. Política públicas necessárias, que não tocam na estrutura que as tornou necessárias. Por isso enquanto seguimos lutando pela Lei João Nery, enquanto seguimos lutando por justiça, investigação e punição para cada caso de violência, mutilação e assassinatos contra a população trans, reforçamos nossa luta anticapitalista e revolucionária como única alternativa para romper com a heteronormatividade compulsória e a cisnormatividade tão incentivadas pelo próprio Estado, as escolas e suas demais instituições.Contra a polícia racista e transfóbica, contra a Igreja e sua moral conservadora, contra o Estado e todos os políticos burgueses gritamos Nenhuma trans a menos! Da educação, à saúde e ao direito a vida: queremos o Pão, mas também as rosas.