quarta-feira, 29 de abril de 2015

VÍDEO: Virginia na mesa de opressões no Congresso dos Trabalhadores da USP

VÍDEO: Virginia fala final no VI Congresso de Trabalhadores da USP







Nesta quarta-feira, 29 de Abril, se realizou o terceiro dia
do VI Congresso dos trabalhadores da Universidade de São Paulo. Com um
rico debate sobre a opressão as mulheres, negros e negras e LGBT, os
trabalhadores da USP deram um passo decisivo na consolidação de um novo
tipo de sindicalismo que luta para que a consciência do trabalhador de
classe e da força social capaz de responder profundamente os maiores
anseios sociais o ajude se forjar como dirigente da nossa classe no
movimento por nossa plena emancipação.
Com a vitória dos trabalhadores da prefeitura do campus Butantã e o grito de "não tem arrego" contra a tentativa de proibir a participação de trabalhadores da FFLCH do VI Congresso, se via um pratagonismo negro que surge do maior grupo de negros dentro desta
universidade elitista: os trabalhadores e trabalhadoras da USP, os que realmente mantém essa universidade com seus bandejões, bibliotecas, etc.

Virgínia Guitzel é trabalhadora da saúde mental em São Bernardo do Campo, na Unidade de Acolhimento Transitório, uma república ligada ao CAPS AD para usuários de alcool e drogas em uso abusivo. É ativista LGBT, pelo Pão e Rosas e militante do Movimento Revolucionário de Trabalhadores

terça-feira, 21 de abril de 2015

Verônica deu visibilidade à realidade de milhares de mulheres trans negras no Brasil


Há dez dias desde que Verônica foi presa e torturada pela Policia Militar de São Paulo, a redes sociais se tornaram uma verdadeira guerra de informações, polarizando opiniões e produzindo um ativismo virtual em defesa de Verônica nunca antes visto. A campanha #SomotodosVeronica com mais de 19 mil curtidas gerou uma profunda ampliação do debate sobre as identidades trans que saiu das redes virtuais e tomou as conversar nos bares, nos locais de trabalho e nos espaços de juventude. Uma clara demonstração do potencial ascendente da força que a luta contra a dominação de nossas identidades e de nossas múltiplas sexualidades vem ganhando no país desde Junho de 2013.

Todavia, a complicada situação que envolve a agressão entre vizinhos, nos coloca uma reflexão importante sobre o papel do Estado e da polícia diretamente ligado a profunda violência e assassinatos contra às mulheres cis* e trans e os limites da democracia burguesa e a “igualdade das leis e direitos”. Esse caso levanta muitos debates que neste artigo não daremos conta de tratar. Nos dedicaremos, frente a necessidade de cuidar da integridade física e psicológica de Verônica, defende-la contra o Estado responsável pela gigantesca desigualdade de gênero, do feminicidio e as reviravoltas nos direitos sociais.  (*Cis: É a identidade de gênero, também construída socialmente, de homens ou mulheres não trans. Isto é, que são definidas pelo reconhecimento, identificação e expressão determinado de acordo com a lógica normativa de identidade correspondente ao órgão genital: mulher-vagina. Homem-pênis).


Visibilidade para humilhar ou cooptar 


Partindo de que não há igualdade de vida, e nem de lei (!!!) para milhares de travestis, homens e mulheres trans e pessoas não binárias (que não se reconhecem nem como homens, nem como mulheres), a luta por visibilidade veio ganhando contornos mais profundos. Ora ganhamos visibilidade quando sofremos ou cometemos violência ora quando está atrelada a um novo nicho de mercado, para um setor da pequena burguesia LGB (e muito menos)T. As fotos de Verônica assim como os vídeos de homossexuais agredidos na avenida Paulista, Kaique Augusto, João Donati, Geia Borghi, Piu, Marcos Vinicius, Indianara são visibilidades para humilhar e estereotipar, uma forma de “marcar posição”, que nos trataram como animais de caça (origem da palavra viado) e que a cada nova vítima – filmada e torturada – vão mais aterrorizar e nos colocar na defensiva.

Quem é travesti ou do meio LGBT não apenas sabe, mas sente a violência sistemática que persegue em cada olhar maldoso, nas risadas humilhantes, nos comentários indiscretos, na condição de prostituição compulsória, na hiper-sexualização, na sexualidade trans e homossexual tratada como piada, no constrangimento ao ter de utilizar o nome de registro, na rejeição da maioria das famílias, de ser vista como doente, pecadora ou criminosa. Para afirmarem que somos loucas, só basta recorrer a Organização Mundial de Saúde que ainda hoje carrega o Condigo Internacional de Doenças o F-64, enquadrando a identidade trans e travesti como parte das doenças mentais. Qualquer mulher trans está sujeita a ser Verônica, por reagir à sua opressão de maneira desorganizada, por conta própria, por desespero ou como foi este caso, por desconfiança de transfobia.

A profunda desigualdade de gênero que sofrem as identidades trans começou a ser questionada em maior escala com esta campanha, mas não conseguiu ainda encontrar o caminho para transformar este caso particular numa verdadeira denuncia de um problema social, que atinge diversas classes sócias, mas que principalmente diz respeito ao movimento de mulheres, trasfeminismo, movimento negro e a esquerda.


Nem igualdade na lei, nem igualdade da vida: “se eu não existo, porque cobrás de mim?”



Lamentamos e não concordamos com que Laura tenha sofrido qualquer tipo de violência de Verônica e acreditamos que essa atitude tenha ganhado tamanha visibilidade para tentar desfazer o foco das denúncias das torturas, profunda humilhação e desrespeito à identidade trans. É importante constatar que em todos os casos que ganharam visibilidade sobre agressões ou assassinatos, que a polícia e a mídia se posicionam alinhadas sobre os casos tentando ao máximo rever as provas, as declarações, os familiares e as próprias vítimas para no resultado final não reconhecer estes crimes como homo-lesbo-transfobia.

Ainda que achemos completamente equivocado a agressão cometida por Verônica, não concordamos que justamente este Estado acusado e comprovado culpado por transfobia se responsabilize por sua integridade. Seria muito mais legítimo reunir os moradores do edifício, a travesti e a idosa agredidas, assim como o movimento trans junto aos movimentos de direitos humanos e familiares de Vêronica para fazer um debate buscando responder de maneira fraternal o ocorrido. Somente com um debate entre todos que realmente se preocupam em encontrar uma solução, poderíamos demonstrar as consequências de respostas individuais e assim ser uma maneira educativa para todos para que ações como essa não venham a se repetir ou parecer como “válvula de escape” para tamanha situação de opressão que as pessoas trans são submetidas. Somente assim é possível fazer com que os homens e mulheres trans, as travestis e os demais setores oprimidos possam avançar junto com o movimento numa saída coletiva para nossa emancipação, reconhecendo o Estado e a polícia como instituições criadas para reprimir, torturar e nos atacar.

É preciso dizer que tanto Verônica quanto Laura são vitimas deste mesmo Estado que segue utilizando os mesmos métodos de tortura da ditadura militar (http://www.esquerdadiario.com.br/A-repressao-sexual-da-ditadura-militar-a-democracia-Parte-I) contra a população negra, pobre e trans. Compreender que Laura e Verônica são inimigas é não reconhecer a profunda relação de dominação do patriarcado e a ideologia neoliberal que fragmentou o conjunto dos movimentos sócias e lhes retirou sua saída radical, de questionar profundamente o Estado capitalista, a polícia como braço armado da repressão e a necessidade da unidade dos movimentos aliado ao movimento operário na luta revolucionária por uma sociedade sem classes e opressão.

O Estado não é um organismo acima das classes sociais, neutro e justo que existe para garantir a melhoria das condições de vida para as massas trabalhadoras, populares e para os setores oprimidos. Muito pelo contrário, o Estado só justifica sua essência – necessária - enquanto exercer seu papel de dominação de uma pequena minoria de exploradores sobre as massas populares, pobres e exploradoras. As opressões e a profunda situação de miséria com a qual vivemos, quando não seguimos a identidade de gênero hegemônica ou a sexualidade que desavia a moral burguesa conservadora, é uma maneira consciente de aperfeiçoar este regime de dominação. Por isso, é tão importante a fragmentação dos movimentos sociais conquistada nos anos da restauração conservadora. E por isso, a dificuldade de lançar luz para responder profundamente como relacionar a particularidade de Verônica com a defesa incontestável do direito as identidades trans ligada a luta revolucionária por uma outra sociedade onde possamos ser, com condições materiais e psicológicas, quem e o que nós quisermos.

Aceitar a prisão de Verônica é deixar com que o Estado para além da opressão que nos impõem de detalhe a cada problema estrutural ainda nos culpe, julgue e puna pela violência produto da reprodução das opressões. Não precisamos dizer que talvez Verônica nem teria chegado até nós e seria mais uma triste vítima invisibilizada. Mesmo assim conseguindo alcançar visibilidade para denunciar, foram diversas tentativas de esconder o caso, inclusive a própria Coordenadora dos Direitos LGBT, que é parte da Diversidade Tucana, chantageando-a e oferecendo-a redução da pena por livrar a cara deste Estado miserável. Por isso, viemos recuperando a grande batalha de StoneWall contra a polícia (http://www.esquerdadiario.com.br/Para-cada-Veronica-construamos-um-novo-StoneWall), pois é preciso seguir estes passos num forte combate ao Estado capitalista, seu braço armado e suas instituições.


Não a punição dos oprimidos! Nossa educação revolucionária precisa vir de nosso próprio movimento!



A agressão à Laura abriu as portas para todo comentário e xingamento transfóbico. Declarações que Verônica deveria estar morta são apenas uma pequena expressão de quanto a transfobia é legitimada no Brasil. Mesmo com 12 anos do PT no governo, a homo e transfobia só cresceram, isto por responsabilidade direta dos acordos com Cunha, Vaticano, Felicianos e outros tantos reacionários que sistematicamente perseguem os direitos mais elementares da população LGBT combinado com a persistente descriminação a liberdade religiosa. Pois todos sabem que as religiões afro são as únicas que respeitam as identidades não cisgêneras e as orientações não heterossexuais.

Os movimentos feministas radicais, profundamente transfóbicos, seguem negando a existência das identidades de gênero e defenderam que não eram Verônicas enquanto setores do movimento transfeminista se recusaram a defender a consigna porque não defendem universalizar as opressões, encarando-as de maneira tão particular que se tornam impossível de reconhecimento. Ambas estratégias não se propõem a acabar com essa sociedade vigente, senão reforma-la culturalmente, buscando a igualdade politica divorciada da igualdade econômica.

É preciso então debater com os outros setores que se indignaram com o escândalo deste caso. A prisão desta mulher trans significa uma verdadeira barbárie, pois para além de todas as humilhações e opressões, ainda terá de passar anos dentro da cadeia, sem sua liberdade, sofrendo maus-tratos próprios da policia e do sistema carcerário. 

Aos conservadores que enchem a boca para defende sua prisão, temos de dizer "se quer falar sobre igualdade, responda onde esteve as "igualdades" de Verônica e de milhares de travestis e transsexuais no acesso e permanência nas escolas? Onde esteve a igualdade nas oportunidades de emprego? No serviços de saúde? No respeito a identidade de gênero? Só reivindicam igualdade quando cometemos crimes, ignorando que a profunda realidade de violência com qual vivemos sistematicamente nos atingem ficam impunes? Como o caso do eletricista do ABC que foi esfaqueado no seu próprio prédio, e o homofobico fugiu e segue em liberdade? 

Este é o Estado  que deixa impune os casos de feminicidio que só aumentam, que dá aos policiais o privilegio de ser julgado separado da população por seus crimes, que anistiou os torturadores e que nos maiores escândalos de corrupção das últimas décadas se demonstrou incapaz de punir os grandes crimes de políticos envolvidos na operação Lava Jato, no Mensalão ou nos carteis do Metro de São Paulo. Demonstram claramente que a cadeia brasileira é lugar para negros, pobres e trans, não os ladrões do povo, os corruptos e os que vivem da exploração dos outros.

A única forma de garantir verdadeiramente a integridade de Verônica é não individualizar esta situação. É apontar que o movimento Somos Todas Verônica é parte de transformar isso numa grande causa nacional, que exponha a realidade das identidades trans de profunda opressão e marginalização. Nos inspirando em StoneWall orientamos nossa luta de maneira coletiva e nosso ódio contra este Estado mantedor das opressões e da profunda divisão entre os oprimidos. Não podemos entregar Verônica para o Estado, quem deve decidir sobre seu tratamento médico e psicológico não é o Estado, mas sim seus familiares, os movimentos de direitos humanos, o transfeminismo e o movimento de mulheres, sindicatos e entidades estudantis. Temos de exigir a imediata aprovação da Lei João Nery e que possamos ser parte ativa da investigação dos policiais responsáveis pelas torturas. Nenhuma confiança no Estado, assim nasceu nosso movimento e assim que deve seguir.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

CAMPANHA DE FOTOS POR VERÔNICA




Pelo direito ao emprego!

Pelo direito ao emprego! Pelo direito ao nome social e o respeito a identidade de gênero!
 Basta de assédio, homofobia e transfobia nos locais de trabalho! 

Meu nome, Meu corpo, 
Minha Identidade e Sexualidade: 
Não pertence aos patrões, nem a igreja, nem ao Estado! 

Pela aprovação da lei João Nery! 
Que os sindicatos tomem em suas mãos a luta contra as opressões!


Para cada Verônica, construamos um novo StoneWall

No dia 10 de Abril a modelo Verônica Bolina foi presa após uma confusão em seu prédio, acusada de agredir uma vizinha. Dois dias depois, houve uma briga durante a transferência de cela entre Verônica e o carcereiro. Sua cor e identidade de gênero se tornaram desculpa para tamanha violência e brutalidade policial injustificáveis.




Enquanto a grande mídia tratou de expor a travesti com os seios de fora, o rosto desfigurado pelas agressões e o cabelo raspado a força, defendiam e colocavam a versão da polícia e do carcereiro que perdeu sua orelha durante o conflito. Verônica foi mais uma vez silenciada e desrespeitada pela mídia e pelo Estado que negaram - como negam a todas as identidades de gênero não hegemônicas - sua existência, sua identidade, sua humanidade.
O caso que vem chocando as redes sociais e ganhando uma ampla adesão contra a violência e violação dos direitos humanos de Verônica Bolina, mulher transexual e negra nos é um soco no estomago, pois evidencia a triste realidade contra as mulheres no país. Como bem retrata o texto de Rita Frau no Esquerda Diário sobre a aprovação da lei do Feminicídio , as mulheres trans e travestis seguem ser qualquer tipo de cidadania e direitos humanos, onde o Estado não reconhece suas identidades e muito menos que as agressões,mutilações e assassinatos são violência de gênero.
O caso Verônica nos lembra que foi na luta contra as forças policiais dos EUA que a nossa identidade orgulhosa se levantou contra a moral burguesa e as visões cisnormativas e hetero-patriarcais. Foram as barricadas de StoneWall que incendiaram o mundo inteiro nos levantes pela liberação sexual e identitária e pela a organização do movimento LGBT e trans. É como denunciado no resgaste a história de repressão às travestis e homossexuais que os combates entre a polícia e os LGBT, em especial as travestis, prostitutas e a população negra, não são de hoje. Por isso o movimento LGBT levantar fortemente a bandeira de "Fim da polícia" é parte de ser um fio de continuidade do movimento pela libertação identitária e sexual com as lições mais profundas sobre o caráter (inimigo) do Estado, de seu braço armado e da ideologia dominante.
Direitos Humanos para quem?
O Esquerda Diário vem denunciando as dificultosas situações que passam as pessoas trans. Desde a educação , na saúde e no mercado de trabalho a descriminação faz sua parte em empurrar a maioria das pessoas trans à prostituição compulsória, com maior vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis, à depressão e às cotidianas agressões e assassinatos. Fica cada vez mais evidente que não são todas as pessoas que "merecem" os direitos humanos.
Segundo os dados da ONU que pelo menos 40% dos assassinatos de travestis e homens e mulheres transsexuais no mundo ocorrem no Brasil. Esta realidade poderia caracterizar um "transfemicídio" que se apoia na ausência de uma única lei que garanta o reconhecimento das identidades trans, do direito ao nome, as transformações corporais, à educação e todas as outras necessidades universais para o desenvolvimento pleno do ser humano. Verônica nos mostra esta realidade sem qualquer disfarce ou maquiagem: a dura e crua realidade das travestis negras no Brasil. Ao rasparem seu cabelo à força, ao desconfigurarem seu rosto com diversas agressões e ao fazê-la se sujeitar a cela masculina, Verônica foi desrespeitada em toda sua integridade. O Estado, governado por Dilma e com mesma responsabilidade do Congresso Nacional impedem a aprovação da Lei João Nery. Enquanto se silenciam sobre o caso, e fazem novos acordos com os setores conservadores como foi Feliciano, Maluf e outros, permitem que a transfobia siga fazendo suas vítimas. Arrancam nossos cabelos, muitas vezes nossos seios são mutilados, o rosto deformado e assim deixam um recado de que vão "corrigir" nossa identidade.
A polícia e o "confessionário das vítimas"
O áudio que circula nas redes sociais do suposto depoimento de Verônica divulgado pela Heloisa Alves, Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo, está a serviço de reforçar a ideia de que não existe transfobia, mesmo nos casos mais escandalosos e revoltantes. Levantaram novas suspeitas como informou o site Fórum pois pode-se ouvir Heloisa aparentemente ditando o discurso de Verônica. Isso coloca novamente em questionamento o papel da polícia, que é responsável pelos massacres nos morros Quando morreram Kaique Augusto, João Donati, Geia Borghi, e outros LGBT já fomos enfrentados com estes discursos. Assim como o suposto "suicídio", a polícia encontra nesta gravação a mesma forma de escape que são os famosos "autos de resistência" que mata a juventude negra, como foi o escandaloso caso do menino Eduardo de 10 anos no morro do Alemão há poucos dias.
Verônica infelizmente não é o primeiro caso de uma mulher trans presa oprimida por transfobia de Estado e nem isto é uma exclusividade brasileira. Cece McDonald, mulher trans negra norte americana foi agredida com insultos racistas e transfóbicos enquanto caminhava até o supermercado com um grupo de amigos. Ao responder aos xingamentos, foi atacada com um copo, que lhe cortou uma glândula salivar. CeCe então tentou correr pra longe do local, ao mesmo tempo tirando da bolsa uma tesoura para se defender. Ao chegar à esquina, ela foi atacada por um neonazista chamado Dean Schmitz que, ao puxá-la em sua direção, foi atingido no peito pela tesoura, e veio a falecer. Em 04 de de junho de 2012, ela foi condenada a 41 meses de prisão pelo "homicídio culposo de Schmitz. Detida, com 23 anos, em uma cela masculina, foi proibida de seguir com seu tratamento hormonal. Seu crime? Sobreviver.
A campanha internacional que Cece McDonald gerou uma importante comoção que depois estaria expressa no movimento "A vida das trans importam" por conta do suícidio de Leelah. Frente a crise capitalista que passamos, em especial no Brasil onde Dilma e seus aliados atacam os trabalhadores e a juventude, fica claro os limites da tentativa de inserção nessa democracia degradada e nas batalhas pela "democratização radical da democracia". Verônica e Cece apontam que sem acabar com a desigualdade social, é impossível acabar com a desigualdade de gênero.
Não é possível ter qualquer confiança na polícia! Por isso, os sindicatos e as entidades estudantis precisam se apresentar como verdadeiras representantes dos anseios da sociedade, contra todas as formas de injustiças, opressão e exploração. É preciso tirar da mão do Estado que reproduz e se apropriou da transfobia. É preciso lutarmos por uma investigação independente com participação dos movimentos LGBT e de direitos humanos que possa garantir a integridade de Verônica e a punição dos responsáveis.
Basta de transfobia! Basta de racismo!
Pelo fim da polícia! Seguir o exemplo de StoneWall!

A repressão sexual e identitária da ditadura militar à democracia– Parte II


Nunca antes na história foi tão forte o "espírito igualitarista" fruto do avançado alcance da visibilidade das identidades não cisgêneras e das sexualidades não heteronormativas. Este processo de tornar a sexualidade algo exposto e público, tirando do âmbito privado, assim permitindo tanto sua regulamentação pelo Estado, como também a hipersexualização como forma de emancipação via consumo, o que chamamos de Pink Money gerou profundas contradições. Como viemos assinalando, a repressão sexual e identitária não começou, tampouco acabou com o fim da ditadura militar.
Quem lutou pela libertação sexual?
Ainda que a compreensão de que o capitalismo tem como uma de suas características a habilidade de se apropriar de opressões anteriores ao seu surgimento e, desta maneira, aperfeiçoar a exploração, e a dominação da burguesia sob o proletariado e as demais classes sociais até os dias de hoje, é ainda débil no pensamento da esquerda brasileira a clareza de que o combate a toda forma de opressão é parte da tradição dos partidos revolucionários de ver como tarefa do conjunto da classe trabalhadora a luta intransigente contra todas as formas de opressão.
Um exemplo disso foi em 1862, na sede do maior movimento socialista, na Alemanha, o partido Social Democrata foi o primeiro partido em toda a história a se manifestar contra a perseguição aos homossexuais. O caso foi o de Jean Baptiste Von Schweitzer, um advogado que passeava no parque junto ao seu companheiro e foi preso por duas semanas, e expulso de sua profissão por ser homossexual.
Anos após isso, em 1885, a prisão de Oscar Wilde abriu novamente este intenso debate no movimento revolucionário. Ainda sem um movimento homossexual ou de liberação sexual (ou ainda o nosso atual Movimento LGBT), foi novamente a ala à esquerda do Partido Social Democrata que se manifestou em defesa de Oscar Wilde, com figuras importantes como Karl Kautsky e Eduardo Bernstein.
Em 1979, ano que ocorreu então o primeiro debate público sobre gênero e sexualidade no Brasil, organizado pelo Centro Acadêmico de Ciências Sociais da USP, a esquerda não pôde responder como fio de continuidade ao legado revolucionário.
O debate descrito no livro de James N. Green e Renan Quinalha expressava um debate que sobrevive até os dias de hoje: duas vertentes opostas, que não dialogam e não buscam uma verdadeira emancipação. Por um lado, o grupo homossexual SOMOS que participava do debate defendia que o grupo deveria lutar apenas contra a descriminação sexual, enquanto os estudantes achavam que deveriam priorizar a (famosa) “luta maior” contra a ditadura.
Luta maior ou Luta especifica?
Essa concepção de que somente após a revolução se deve debater as demandas sociais dos setores oprimidos, como o combate a repressão sexual, o machismo, a homo-transfobia ou o racismo, são maneiras de lutar por “uma revolução qualquer” que não responderá aos interesses de seus soldados que a colocaram em pé.
Por isso, recorrer a história do grande revolucionário russo Leon Trotsky, que dedicou sua vida a luta revolucionária, nos permite ver que a tão necessária transformação radical das relações sociais e da cultura das massas tem como condição a revolução social que possibilite as bases materiais para o avançar da humanidade, que somente poderá dar seus primeiros passos de sua verdadeira história a partir do fim da sociedade de classes.
Isto porque sem garantir condições econômicas de igualdade é impossível eliminar a desigualdade de gênero, sexual ou étnica. Ainda que se aprovem leis, se institua por decreto a igualdade, não é possível separar a economia da política e, nesse sentido, garantir igualdade política sem igualdade social. Por exemplo, enquanto houver o trabalho doméstico relegado historicamente às mulheres, a prostituição compulsória às travesti ou postos de trabalhos precários que os negros ocupam, não se pode transformar a cultura das massas nem vencer esta disputa ideologia com a classe dominante.
Retomar os debates sobre estratégia revolucionária lança luz à confusão da época, uma vez que nem o grupo SOMOS nem tanto os estudantes e a esquerda brasileira podiam esconder essa polarização entre “luta específica” e “luta maior”.
O primeiro não enxergava como sua tarefa a libertação sexual do conjunto da humanidade, mas sim a inclusão dos homossexuais (com pouquíssimo destaque às identidades trans) em busca da "ampliação da cidadania"; enquanto a esquerda e os estudantes não possuíam uma verdadeira compreensão do papel fundamental do combate às opressões.
Seria importante remarcar que, ao marxismo revolucionário jogar luz a não dialética dicotonomia entre luta maior e luta específica, podemos compreender que a composição objetiva de trabalhadores, hétero e homossexuais, nos coloca o combate a homofobia como parte de impedir a divisão das fileiras operárias. Mas além disso, aponta para um debate estratégico que é a necessidade da classe operária, a única classe que por sua posição estratégica pode destruir a economia capitalista, estar armada de valores comunistas, se não de nada servirá sua localização privilegiada.
Foi então a Convergência Socialista a única organização brasileira a ter desenvolvido um programa pela libertação homossexual. Participaram com três membros do grupo SOMOS e foram ativos em desenvolver uma aliança entre trabalhadores e o movimento homossexual dos 80.
A chegada da democracia: ilusões, cooptação e mais humilhações
A democracia burguesa avançou em todo o globo como um fenômeno geo-político pela primeira vez na história. Alcançou junto ao neoliberalismo um importante símbolo de “avanço civilizatório”. Todavia, não consegue esconder as profundas desigualdades sociais e, apesar das “exceções de oprimidos” que ocupam importantes cargos como a presidência da república, como Dilma e Obama, ou tornam-se diretamente burgueses e membros da classe dominante, as amplas massas femininas, LGBT e negras seguem reprimidas e sofrendo humilhações não muito distantes dos anos da ditadura.
É inegável, a democracia conseguiu desfazer a censura “do seu jeito”, aproveitando-se para o Pink Money, constituindo um novo nicho de mercado. Todavia, as novelas e os filmes introduzirem personagens LGBT, protagonistas mulheres e negros contribuem para a construção de um referencial inimaginável nos anos de chumbo.
Todavia, se a democracia favoreceu a organização dos setores oprimidos e do movimento operário, também impôs uma domesticação dos movimentos sociais perdendo seu caráter anticapitalista e buscando “ocupar espaços” na tentativa de conquistar a igualdade dos grupos sociais oprimidos, pela via de cargos parlamentares ou reformas políticas. Do outro lado, o movimento operário, devido suas direções históricas e os anos da restauração conservadora, foi reduzido às lutas salariais e perdeu seu potencial de sujeito revolucionário capaz de trazer para seu lado os demais setores oprimidos e as classes sociais para colocar um fim neste sistema de miséria e opressão.

A repressão sexual e identitária: da ditadura militar à democracia– Parte I

No mês que se completa 51 anos do golpe militar, ainda pouco se discute sobre os profundos impactos da repressão cultural e sexual impostos pelo regime autoritário. É então tarefa nossa recuperar a trajetória da luta pela emancipação sexual desde o Brasil.





Se é correto afirmar que a homo-transfobia já existia muito antes do golpe militar em 1964, certamente também se pode dizer que este período e sua repressão em todos os níveis (político, cultural, cientifico e intelectual) também deixou novas marcas na luta pela libertação sexual no Brasil.
O recente livro “Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade” é uma grande contribuição ao movimento LGBT brasileiro (senão mundial) e contribui para a luta por nossa emancipação, nos dando uma arma que a classe dominante se negou e negaria até o fim a nos conceder: o direito a nossa própria história (como protagonistas e não vítimas).
A primeira onda pela libertação sexual e a chegada da ditadura no Brasil
Enquanto os anos 60 e 70 marcaram um forte levante internacional da juventude e grandes demonstrações da força da classe trabalhadora, se preparou e se implementou uma ditadura no Brasil.
A partir do Maio francês e a luta contra a invasão imperialista no Vietnã avançavam exemplos como a grandiosa revolta de Stonewall em 1969 e a efervescência de grupos políticos voltados à luta por igualdade para os homossexuais. As massas podiam ver o capitalismo como algo a ser superado e todos os anseios poderiam ser emancipados com a luta revolucionária da classe trabalhadora em unidade com os que mais sofriam com este sistema. Os símbolos dessa luta exigiam a ampliação do reconhecimento de outras identidades e orientações sexuais.
No Brasil, o golpe militar debilitou o surgimento dessa tendência, eliminando os direitos democráticos de organização política e cultural. Isso significou uma organização política tardia menos influenciada pela primeira onda mundial da libertação sexual, menos apaixonada pelas ideias revolucionárias e mais atingida pelas derrotas históricas impostas pelas direções do movimento operário.
A forma da luta já era imersa no contexto neoliberal de luta por mais direitos e inclusão à ordem capitalista – encontrando nas identidades cis e heterossexual a “maior realização” ou “emancipação do ser” ignorando o caráter de classe e os limites impostos pelo capitalismo.
Também é relevante lembrar que o surgimento de grupos políticos pela igualdade de gênero e sexual são marcados pela epidemia da AIDS que era amplamente divulgada como câncer-gay. Isto impôs uma reorganização da comunidade LGBT em ONGs dando hierarquia a prevenção e atenção para os sorospositivos.
Censura e repressão x resistência e organização
A grande censura imposta pela ditadura impedia questões elementares como que os LGBT pudessem recolher o número de agressões, violência e assassinatos para ter uma análise cientifica da homo-transfobia. Apenas em 1980 o Grupo Gay da Bahia começaria a coletar estes dados para ter algum tipo de registro de “quem a homofobia matou hoje”. Todavia estes esforços não impediram o surgimento do grupo Dzi Croquetes em 1973 com grande enfrentamento moral e artístico, nem mesmo as chocantes performances de Cláudia Wonder, travesti ativista ou a impressionante imprensa Lampião de Esquina lançada em 1978.
Nos anos de chumbo, a ideologia que tratava a sexualidade não heterossexual como doente, pecadora, perigo social, e atentado à família também dizia que esse “modo de ser” é parte de uma “conspiração comunista”. Para combater este “mal” se utilizou de diversos recursos: descriminação nos locais de trabalho, assédios, decretos e uma ampla campanha pela moral e os bons costumes.
A lei de vadiagem, existente desde 1924, utilizada de maneira acrítica a serviço da dominação, exploração e submissão, ganhou força em São Paulo em 1976 com o delegado Guido Fonseca à frente, permitindo a prisão de todas travestis para averiguação de “vadiagem”, onde eram julgadas por suas roupas por “mais ou menos perigosas”. Entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de Julho de 1977 foram 460 travestis detidas, segundo conta o livro “Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade”.
Além desta repressão expressa nestas muitas prisões que puderam ser registradas, o Estado também organizou ou deixou ’correrem soltos’ grupos de extermínio que perseguiam LGBTs, negros, trabalhadores, pobres cotidianamente, e deixaram profundas marcas em vários locais do país. Na transição à democracia burguesa muitos destes grupos com ligações com o Estado foram as bases para o surgimento de milícias. Esta repressão e exploração ligava-se e ainda se liga frequentemente à prostituição, à cafetinagem, proxenetismo é outras herança de opressões anteriores à ditadura mas que esta incentivou, e que ainda carregamos até hoje.
A repressão também atingiu o médico Roberto Faria, primeiro brasileiro a realizar cirurgias de modificação corporal, foi processado pelo Ministério Público por “grave lesão corporal”, foi condenado a dois anos de prisão, mas mais tarde foi absolvido pelo STF. Mas foi no governo de Paulo Maluf que a perseguição se acentuou. O delegado José Wilson Richetti, dois dias depois de sua posse, anunciou a operação Cidade que prendeu 172 pessoas, segundo o próprio delegado eram “homossexuais, prostitutas, travestis e um individuo com posse ilegal de arma”.
Como denuncia o documentário de Rita Moreira, a operação Tarantura também foi responsável pela perseguição às travestis, onde em muitos casos, desapareciam, eram atiradas no rio Tietê em São Paulo quando não assassinadas.
Frente tamanha repressão, muito tardiamente, em 1978, surgiria o primeiro grupo de autoafirmação homossexual chamado SOMOS, em referência ao Boletim de um grupo gay argentino (FLH) que carregava este nome.
Até hoje conhecido por sua bravura de ter ido a assembleia na Vila Euclides no 1 de Maio de 1980, com cerca de 50 membros, com faixas “Contra a descriminação do/a trabalhador/a homossexual” e “Contra a intervenções no ABC” foi um grito de resistência que exigia seu próprio espaço. Algumas semanas depois, 14 de Junho, no centro de São Paulo houve a primeira manifestação pública do movimento LGBT contra o delegado Wilson Richetti responsável pelas rondas e operações contra LGBT.
Também é enfático lembrar do que ficou conhecido como "pequeno Stonewall brasileiro", a revolta das mulheres lésbicas no Ferros´s Bar. Essa revolta se deu num bar muito frequentado às noites por mulheres lésbicas, contragosto do proprietário que não queriam que o bar fosse considerado para este público, se negando inclusive a incluí-lo no roteiro para lésbicas para o famoso jornal Lampião de Esquina.
O grupo LF (Lésbico Feminista) e GALF (Grupo de Ação Lésbica Feminista) vendiam ali seus boletins "Chanacomchana". No dia 23 de Julho de 1983, enquanto as ativistas vendiam seus boletins, o proprietário junto com seus seguranças e o porteiro expulsaram as mulheres à força e disseram que estavam proibidas de voltarem e venderem o boletim. O dono inclusive chamou a polícia. Porém, as mulheres lésbicas não desistiram, pelo contrário, decidiram pela retomada do Ferro’s. Articularam-se com a imprensa, com os movimentos homossexuais, ativistas de direitos humanos, e no dia 19 de Agosto do mesmo ano voltaram com um grande número de apoiadores e invadiram o bar. O porteiro sozinho tentou evitar, mas não teve jeito. As lésbicas tomavam os bar e impuseram ao dono que fosse permitido a venda dos materiais.O que em 2003 seria homenageado à esta data como Dia Nacional do Orgulho Lésbico.
É este surgimento do movimento LGBT durante o ascenso grevístico que aponta a força da aliança dos LGBT com os trabalhadores que permitiram construir uma nova sociedade sem qualquer tipo de opressão. E recuperam a verdade do pensamento de Engels de que ““É um fato curioso que a cada grande movimento revolucionário vem à tona a questão do ‘amor livre’.” (F. Engels, 1883)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Meu corpo, meu campo de batalha: uma pequena conquista pra quem sonha com a emancipação

CRÔNICA

Meu corpo, meu campo de batalha: uma pequena conquista pra quem sonha com a emancipação




Quatro dias sem fumar, em vez de fumar um cigarro atrás do outro, como seria de costume quando fico nervosa. Quase enlouquecendo. A cada dia que passava, riscava em minha agenda e cronometrava as horas que ainda faltavam. Tentava me convencer a não ser tão esperançosa, pois outras consultas médicas já haviam me desapontado com a longa espera para receber legitimamente meu tratamento hormonal.
Em dezembro de 2013, passei na primeira consulta médica no Ambulatório de Travestis e Transexuais, na Santa Cruz. Um dos dois únicos lugares de São Paulo que possuem tratamento hormonal especializado e onde pode-se encaminhar também para a realização da "famosa" (e tão curiosa) cirurgia para homens e mulheres trans sentirem-se mais confortáveis, mais felizes, ou em alguns casos não deprimidas com seus corpos.
Todos os dias que esperei por este tratamento, vi de frente os avanços e contradições do sistema público de saúde para com as pessoas trans. Afinal, trabalho na saúde e tive de fazer diversos acompanhamentos com clínico geral, psicóloga e endocrinologista. Construção, como é minha identidade - e não é todos assim? De acordo com a vida, do que nos foi ensinado, do que nos foi apresentado, do que nos foi permitido e de como nos relacionamos com o mundo afora de nós mesmas? -, fui conhecendo cada vez mais sobre mim mesma e sobre o que é ser uma travesti na sociedade capitalista, no Brasil, em São Paulo, e inclusive trabalhando na saúde pública.
Mas, então, finalmente foi nessa segunda-feira. Fui trabalhar às 7 horas da manhã e o relógio parecia não acelerar o tempo para obter a resposta. No meu armário estava o Parecer Psicológico necessário para conseguir uma autorização e as prescrições médicas para começar o tratamento hormonal.
Fiquei pensando se agora seria a minha vez de poder efetivamente construir meu corpo de acordo com quem eu sou e quero ser. Há um ano consegui meu nome social no Crachá do trabalho e hoje todos os funcionários reconhecem minha identidade, ainda que na justiça ainda não tenha dado nem os primeiros passos para a mudança de nome. Sem dúvidas, esse direito básico de ter um trabalho registrado e poder ser eu mesma nele é um ponto fora da curva da situação da maioria das travestis.
Ao me encontrar com uma psicóloga uma vez por semana, como etapa necessária para conseguir a autorização médica e começar o tratamento hormonal, tive muita dificuldade de confiar na nela, mesmo ela me dizendo que não estava ali para me autorizar ou desautorizar, para "investigar" ou padronizar minha identidade. Numa sociedade tão opressora, conseguir uma psicóloga que enxergue estas consultas como um atendimento à minha saúde em vez de uma maneira de policiar meu corpo e minha identidade, ao invés de me desmoralizar ainda mais colaborando com as ofensas e desprezos diários ou, na "melhor das hipoteses", me encaminhando para o tratamento como medida para "curar", "tratar", "resolver" a minha disforia, como chamam, ou o "transtorno" como diz a Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi difícil confiar na minha psicóloga, porque mesmo ela sendo tão rara na psicologia quanto eu no mundo do trabalho, ainda me sentia algemada a ela, por imposição.
Quando terminei de almoçar, vi que estava no horário. Avisei minhas colegas de trabalho que iria na consulta e, uma delas, Rosana, grande amiga minha, me deu um abraço e me desejou boa sorte. Fui. Corria e meu coração explodia, o ônibus era lento demais, o metrô muito quieto e a insegurança de qual seria a resposta hoje já me dava calafrios. Vão me negar por mais quanto tempo? Podem eles decidir por mim sobre meu corpo? A longa espera expulsou quantas travestis e transexuais da segurança na hormonização com acompanhamento médico? Os resultados de tomar por conta própria, do uso do silicone industrial poderão ser revertidos? São apenas 35 anos que esperam que sobrevivamos, no submundo.
Passei pela recepção, entreguei minha carteirinha. "Sala 17, só depositar a ficha". Sentei. Me levantei e bebi água. Sentei novamente. Nada... Mais espera. Tanto tempo esperando e aqueles minutos pareciam ser todos estes dois anos."Virgínia?" disse a médica endocrinologista ao meu lado. "Sim" respondi, enquanto me levantava e controlava meu coração para não sair pela boca.
Nos sentamos na sala médica. Ela buscou os exames correspondentes aos 11 tubos de sangue que tirei no mês passado especialmente para esta consulta. "Está tudo em ordem". Pediu para ler o Parecer Psicológico, o entreguei com orgulho. Neste Parecer, diferentemente dos que via na internet, não constava o CID (Código Internacional de Doenças, no qual somos representadas no CID 10, F-64 como Travesti-Bivalente, Transexualismo, entre outros). Pelo contrário, segundo as palavras de minha psicóloga: "Como condição humana estamos em constante transformação, e nessa metamorfose vamos nos fazendo a cada expressão e escolhas que realizamos (...) e nessa condição, Virginia vem realizando seu modo de ser no mundo, construindo a cada experiência seu existir que não se limite somente a sua sexualidade e muito menos a sexualidade cristalizada dos padrões de normalidade colocados socialmente".
Esse simples texto era quase uma história de contos de fadas, uma vez que meus amigos e amigas já receberam as piores palavras para descrever suas identidades. Nada de liberdade, nada de construção, nada de direitos, mas ofensas, menosprezo e patologização marcavam as tristes cartas que garantiam a continuidade do tratamento hormonal, enquanto invisibilizavam os indivíduos e oprimia suas identidades por trás daquela folha, que nunca poderia descrevê-los.
"Virgínia, você precisa assinar este termo de responsabilidade, declarando ciência sobre todas as transformações reversíveis e irreversíveis em seu corpo. Sabendo das possibilidade de resultados indesejados e que sua identidade de gênero não começa a partir do tratamento hormonal". Sorri. Li atenciosamente, afinal, a minha saúde era o motivo de estar fazendo este acompanhamento. Perguntei sobre o uso de álcool, cigarro junto as medicações, quais atenções eu deveria ter para saber se havia algo de errado com a resposta de meu organismo. Assinei, sorri de novo. Não me aguentava em mim. Finalmente, com 22 anos vou dar início a algo que quero desesperadamente desde os 18. E que poderia ter desejado ainda antes, se não fosse ideologicamente bombardeada por uma ideia que não controlava meu próprio destino, não construía minha própria identidade e não havia nada além do sistema binário de homens (cis) e mulheres (cis).
"Esperar não valeu a pena?" Minha mãe me perguntou, naquela noite. É claro que o tempo, para nós duas, nos mostrou a melhor solução desde que saí de casa e pudéssemos reconstruir uma relação entre nós. "Esperar para viver algo que já decidi, esperar pela saúde disponibilizar apenas dois locais especializados invés de todos os hospitais tratarem isso como uma questão de saúde, esperar enquanto milhares de nós não podem esperar, enquanto milhares de nós - e era esse um dos meus maiores medos - morre pelas mãos da transfobia estrutural sem ter conseguido ser de espírito e corpo o que queria. Não foi o tempo ou a espera que fez isto valer. Foram todos meus amigos e camaradas que estiveram ao meu lado, foram as conversas, o choro compartilhado, a agonia dividida, mas principalmente foi conhecer a história de lutadores como Zumbi dos Palmares, Rosa Luxemburgo, foi conhecer a história dos oprimidos que nunca desistiram, nunca se curvaram, nunca se envergonharam de serem os insurrectos que colocariam abaixo toda a forma de opressão. É minha fé convicta na revolução e nos trabalhadores que ergueu minha cabeça, moveu meu corpo e preencheu meu peito tantos dias e noites para não apenas me enxergar sozinha, mas ver que para além de trans, sou uma trabalhadora, sou uma revolucionária".
Naquela noite, mesmo com meu peito preenchido e a felicidade me contemplando, dormi com um gosto estranho, uma contradição já me assombrava. A conquista dos hormônios não garantiria de nenhuma forma minha emancipação, muito menos tornava mais livre minha construção da identidade de gênero. A transfobia aumentaria? Então, meu ódio também. A violência deste um ano e meio de espera, e os caminhos que pude desviar que agridem tantas travestis e todas as identidades que não seguem o padrão cisnormativo não se apaga com essa mudança. O Estado segue responsável pela violência que sofremos da mesma maneira que pela nossa falta de direitos básicos.