segunda-feira, 7 de julho de 2014

As identidades e suas normatizações a serviço da burguesia.

Virginia G. – militante da FT, seção brasileira:
Liga Estratégica Revolucionária – Quarta Internacional.


A identidade assim como a sexualidade está em processo de construção desde que nascemos. Apesar deste processo se dar de forma pouco racional, pois poucos são aqueles que conseguem intervir nesta construção de forma consciente, por isso, pouco se escolhe, pouco se experimenta, pouco se sabe e é questionado, essa construção vai ao longo da infância tomando forma, através das impressões e intervenções que o individuo adquire contato. Assim como só é possível gostar de uma música, a partir do momento de que se tem contato com ela, só é possível se identificar com algum gênero ou mesmo busca uma forma de construí-lo, através do contato, de uma visão materialista da história (isto é, que somos seres sociais, portanto, construídos socialmente) e das percepções individuais obtidas de um ângulo determinado pela vida especifica desse individuo.
Agora, já anteriormente a nossa capacidade de refletir, já nos foi imposto um nome, um gênero e uma sexualidade pré-determinada, entendida como todos/todas nascem heterossexuais e ao longo dos anos podem sofrer desvios, degenerações ou se “adoentar” com a homossexualidade, num nível menor: bissexualidade, ou num nível maior: homossexualidade absoluta[1].
 Freud, a respeito da homossexualidade, compreendia-a como uma característica normal do curso do desenvolvimento psicossexual de qualquer pessoa, porém a fixação dessa sexualidade como definitiva, demonstrava uma estagnação do avanço da sexualidade.  Essa forma de enxergar a construção de gênero, apesar de se diferenciar de ser uma questão biológica e colocar uma historicidade neste processo, ainda traz severos equívocos. Principalmente, por determinar estágios da sexualidade tão limitados, que no mais do mesmo, traz a heterossexualidade como forma mais avançada – já que não utiliza o termo ‘correta’, diferenciando de uma discussão moralista ou uma discussão ideológica burguesa.
O papel da família se mostra importantíssimo nessa construção, se por um lado nos deixam pouco livres para construirmos nossa identidade, por outro reprimem-nos caso desejamos construí-la diferentemente da norma. Através de nosso órgão genital definem o que já entendem por “essência”, como se houvesse apenas uma expressão de masculinidade e uma expressão de feminilidade, onde o primeiro traz a força, a bravura, e o segundo traz a sensibilidade e a ideia de fragilidade. Essas duas únicas e antagônicas formas de expressão e de gênero são definidas através do órgão genital biológico, que a seguir discutiremos mais.
            Engels, em A origem da Família, da Propriedade privada e do Estado, faz um resgate histórico baseado nos escritos de seu companheiro, já falecido, Marx, onde é capaz de apontar o desenvolvimento das gens (entende-se por grupo de parentes consanguíneos) e a criação da família (por família, entende-se união de pessoas sem laços sanguíneos) como forma reguladora das relações sexuais entre indivíduos pertencentes da mesma gens. Com a instituição da proibição do incesto, primeiramente, entre pessoas de gerações distintas (pais e mães), posteriormente entre irmãos e etc e depois com os avanços da criação de gado, a descoberta da agricultura e a domesticações de animais, foi possível aumentar a produção, alcançando um excedente – ainda pouco relevante. Mas foi o que possibilitou a escravidão de povos de tribos distintas que eram capturados pós-guerras por disputa de território, isso uma vez, que agora, um escravo ao trabalhar, poderia produzir mais do que sua subsistência, caso contrário – como antes era: sem produção de excedente – nada valia escravizar alguém que só poderia produzir o necessário para sua subsistência.
            Essa primeira forma de exploração, foi que possibilitou transformar a divisão, que então era natural, em uma divisão sexual do trabalho. Onde as mulheres – que não se afastavam muito da aldeia por conta da necessidade de amamentar os filhos – tivesse um trabalho mais interno, o que não significa que era um trabalho, como hoje que perdeu toda a relevância social, pelo contrário,

 “manuseavam a lã e o linho, teciam telas e fabricavam roupas para a família, se dedicavam às tarefas de conservação de carnes e produção de demais alimentos, como o queijo e manteiga preparados a partir do leite, etc. Seu trabalho doméstico tinha outra relevância social. Em casa eram produzidos muitos produtos, que se excedentes, podiam ser levados ao mercado e ser considerados como mercadorias, como coisas de valor. Isso porque só os recursos fornecidos pelo trabalho do homem, sem o trabalho doméstico da mulher, não bastavam para manter o lar. Por conseguinte, nesta época, a dona de casa contribuía para aumentar a riqueza econômica do país”.[2]


Essa divisão social, que gerou a desigualdade social entre os gêneros obrigou as mulheres a se submeterem a monogamia – o que na época era uma alternativa para negar-se a manter relações sexuais indesejadas, depois se tornou uma das bases fundamentais de sua opressão.
Como aprofundou Engels, Bachofen e Morgan, a transferência do coletivo matrilinear para o privado patrilinear, com o homem como proprietário das terras e de sua esposa, ocorreu anteriormente do capitalismo. Mas foi neste sistema, que hoje nos encontramos, onde isso tomou as proporções que vemos hoje. A contradição entre o campo e a cidade, a socialização dos meios de produção, mas a apropriação privada, da riqueza nacional e a pobreza do país, reflete-se dentro da célula familiar. Imprimindo seus valores e reproduzindo exatamente os mesmos na formação e construção dos indivíduos que nascem já dentro dessas condições. No Manifesto do Partido Comunista, Marx indica que 

“O burguês encara a sua mulher como um simples instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum e, naturalmente, chega à conclusão de que haverá também uma comunidade de mulheres. Não suspeita que o objetivo real é arrancar a mulher de sua posição de instrumento de produção.”
Para enriquecer e aprofundar nosso debate é indispensável retomarmos o conceito de Flora Tristan, quando ao evidenciar a opressão superlativa das mulheres defini-as como as proletárias dos proletários.
            Trotsky, revolucionário, membro do partido Bolchevique, em sua obra Questões do Modo de Vida, traz a discussão da dissolução da família patriarcal burguesa e das contradições que se abrem com a busca da mulher num papel social mais destacado e o combate do proletário revolucionário que precisa respeitar e aniquilar os valores e vantagens que o capitalismo de propiciava pelo sua identidade de gênero homem.

Segue abaixo, o trecho do sexto capítulo, 'Da antiga à nova família':
"No que diz respeito ao modo de vida familiar, o período de destruição está longe de ter terminado e encontramo-nos ainda em pleno numa época de desmantelamento e dedes locação (...). O modo de vida é muito mais conservador do que a economia e é alias essa a razão por que é de mais difícil compreensão. Em política e em economia, a classe operária procede como um todo; (...) a classe operária está dividida em pequenas células familiares. A transformação do poder e mesmo a do regime econômico (com os trabalhadores tornados proprietários das fábricas e oficinas) são tudo factos que, por certo, se refletem na família, mas só do exterior e por forma indireta, sem abalar os seus hábitos diretamente herdados do passado. A metamorfose do modo de vida e da família exige da classe operária no seu conjunto uma consciência aguda dos problemas e dos esforços a fazer; isso pressupõe, da parte da própria classe operária, um enorme trabalho de educação cultural. A charrua deve rasgar a terra em profundidade. Estabelecer a igualdade política da mulher e do homem no Estado soviético é um dos problemas mais simples. Estabelecer a igualdade económica do trabalhador e da trabalhadora na fábrica, na oficina, no sindicato, é já muito difícil. Mas estabelecer a igualdade efetiva do homem e da mulher na família, eis o que é incomparavelmente mais complicado e exige imensos esforços para revolucionar todo o seu modo de vida. E, no entanto, é evidente que enquanto a igualdade do homem e da mulher não for atingida na família, não se poderá falar seriamente da sua igualdade na produção nem mesmo da sua igualdade política, pois se a mulher continua escravizada à família, à cozinha, à barrela e à costura, as suas possibilidades de agir na vida social e na vida do Estado conservam-se reduzidas em extremo (...)

Como já se disse, acontecimentos de importância considerável — a guerra e a revolução — subverteram o modo de vida familiar, trouxeram consigo o pensamento crítico, a reorganização consciente e a reavaliação das relações familiares e do modo de vida quotidiano. É precisamente a combinação da força mecânica desses grandiosos acontecimentos com a força critica do pensamento que explica, no domínio da família, o período destrutivo que hoje conhecemos. É somente hoje, após a tomada do poder, que o operário russo dá os seus primeiros passos na via da cultura. Sob a influência de abalos profundos, a personalidade subtrai-se pela primeira vez às formas e as relações impostas pela rotina e a tradição da Igreja; será estranho que a sua revolta individual contra a antiga ordem assuma de inicio formas anárquicas ou, falando mais grosseiramente, formas desenfreadas? O mesmo observamos na política, na economia e no exército: anarco-individualismo, “esquerdismos” de toda a espécie, espírito “partisan”, mania das reuniões. Será afinal estranho que esse processo encontre a sua mais intima, e logo a sua mais dolorosa expressão, no domínio da família? Neste caso, a personalidade libertada que quer construir a sua vida de forma nova e não segundo a tradição, manifesta-se pelo desregramento, o “vício” e outros males evocados no decurso da assembleia de Moscovo.

O marido, arrancado pela mobilização às suas condições de vida habituais, toma-se na frente um cidadão revolucionário. É objeto de uma imensa revolução interior. O seu horizonte alarga-se, as suas exigências espirituais elevam-se e tornam-se mais complexas. Ei-lo um outro homem. Regressa à família. Tudo ou quase tudo ali permanece como antes. A antiga unidade familiar desapareceu, enquanto que uma nova unidade não surgiu. A surpresa de parte a parte transforma-se em descontentamento. O descontentamento em irritação. A irritação leva a separação.

 O marido, comunista, faz uma vida social ativa, progride e encontra nela o sentido da sua vida pessoal; Mas a mulher, também comunista, deseja tomar parte no trabalho da coletividade, participar nas reuniões, trabalhar no Soviete ou no sindicato. A família desagrega-se pouco a pouco ou a intimidade familiar desaparece, os conflitos multiplicam-se, o que suscita uma irritação mútua que conduz ao divorcio.

O marido é comunista. A mulher não tem partido. O marido é absorvido pelo seu trabalho de militante, a mulher está, tal como antes, confinada ao circulo familiar. As relações são “pacificas”, fundando-se de facto sobre a indiferença mútua. Mas eis que na célula se decide que os camaradas devem pôr de parte os ícones. O marido considera que isso é natural. Mas, para a mulher — é um drama. E este pretexto verdadeiramente fortuito revela que abismo espiritual separa o marido da mulher. As relações envenenam-se e desfecham na separação. Uma velha família, dez ou quinze anos de vida em comum. O marido é um operário consciencioso, um bom pai de família, e a mulher gosta do seu lar e dispensa toda a sua energia à família. O acaso põe-na em contato com uma organização feminina”.
Um novo mundo se abre para ela. A sua energia encontra ai um campo de ação muito mais vasto. Na família, é a derrocada. O marido zanga-se, a mulher vê-se ofendida na sua dignidade de cidadã. É o divórcio”.

Para Reich, psicanalista nascido na Ucrânia, militante comunista, expulso tanto do stalinista PC alemão quando da associação internacional de psicanalistas, criador do movimento de juventude SEXPOL (política sexual) que chegou a organizar aproximadamente 40 mil jovens no sentido de lutar contra a influencia da moral sexual burguesa na vida da juventude, trabalhou ao lado de Freud por aproximadamente uma década até romperem relações por divergências teóricas e políticas.

"A família e a escola, com efeito, não passam, nos nossos dias, de um ponto de vista político, de oficinas de ordem social burguesa, destinadas a fabricação de pessoas ajuizadas e obedientes. O pai, na sua figura habitual, é o representante das autoridades burguesas e do poder de Estado na família. Autoridade do Estado exige dos adultos a mesma atitude obediente e submissa que aquela que exige o pai dos seus filhos quando são pequenos ou adolescentes. A falta de espírito crítico, a proibição de protesto, a ausência de opinião pessoal caracterizam a relação das crianças fiéis a sua família, com os pais, assim como as dos empregados e funcionários devotados às autoridades, com o Estado, e na fábrica”.

Isto é, a instituição familiar reforça o controle estatal sobre os corpos (como a proibição do aborto) que sua intenção segundo Reich é manter um permanente “exercito industrial de reserva” para a manutenção e continuidade do sistema, garantindo a existência dos indivíduos que irão trabalhar e ser explorados.
A compreensão disso nos faz refletir sobre quem éramos, somos e queremos ser. E compreender de forma dialética, como somos os três estágios dessa construção. Somos ainda a continuidade (tendo avançado ou retrocedido) do que éramos, somos o que somos no momento em que vivemos e também já somos um pouco do que nos esforçamos e desejamos vir a ser.
Muito das explicações biológicas foram cruciais e influentes nos discursos de especialistas no final do sec. XIX. Consolidando a ditadura binaria e contribuíam para a ideia de essência e da heteronormatização. Isso foi cristalizado no discurso medico legal, sendo uma criação da heteronormatividade cientifica, que como nós sabemos, a ciência hoje por estar a serviço da burguesia utiliza este como um discurso ideológico e quando demonstra resultados ou pesquisas mais complexas, tornam-se inquestionáveis, pelo menos, por um tempo.
Não somente para senso-comum, as travestis e transexuais são questionadas por sua construção de gênero que também recai – apesar de até o fim estar longe da normatização e da padronização estabelecida as mulheres e homens com respectivamente vaginas e pênis) na nas limitações, nas caixinhas, etc. Essa construção de gênero que traz diversas pressões subjetivas e objetivas ligadas ao que se entende por feminino e por masculino e qual papel da mulher e do homem dentro da sociedade atual, impõem limites reais, sem dúvida. Mas o fato de questionarmos apenas essas formas de construção, demonstra o quanto nos é naturalizado o homem e a mulher heterossexuais, sendo respectivamente, masculinos e femininas, machos e fêmeas.  É importante para os humanos que construíram-se com essas combinações de características, também rever o quão limitadoras e padronizadas são suas expressões. Por isso, escrevo abaixo sobre a padronização dos corpos machos, por vê-los como mais naturalizados.
O antropólogo Marcos Renato Benedetti[3] contribuiu bastante resgatando historicamente o aparecimento das travestis:

“Berdaches eram indivíduos que, nascidos homens, passavam a adotar vestimentas e comportamentos femininos, executavam tarefas e atividades nitidamente destinadas às mulheres e praticavam sexo com homens, geralmente no papel de passivo. Esses indivíduos eram reconhecidos como pertencentes ao gênero feminino e desfrutavam de papéis sociais legítimos e, às vezes, específicos nas culturas em que viviam”. Assim como Mahu do Taiti, Xanith de Omã, Fa’afafine de Samoa, Panema entre os guaiaqui do Paraguai...

Muito da esquerda ainda hoje, apesar de ir contra a maré de patologização, não significa derrotar a transfobia, principalmente a internalizada. A dificuldade, que a seguir tentaremos esclarecer, de entender a construção livre dos padrões já estabelecidos. Ter esse dado, nos fortalece, a evidenciar que os indivíduos ao se construírem socialmente se identificam com seus gêneros por distintos níveis de sensibilidade, que vão para muito além das genitálias. Que historicamente isso se desenvolveu, não já como fruto do sistema capitalista – assim combatemos também a visão da influencia capitalista nessa identificação, apesar de ter uma influencia real sobre as normatizações, as idealizações a respeito e a necessidade criada da coerência entre o corpo e a mente. Mas é nessa produção do corpo física que se tornam agentes de suas próprias vidas.
As teorias, pós-identitárias, trazem um combate aos nomes e ideias heteronormativas. Se por um lado abandonam o viés classista e pouco analisam a realidade de forma capaz de compreender que o Pink Money e a relação do consumismo com os problemas sociais é anterior ao consumo, mas baseado ainda na relação da produção. Pouco colocam os trabalhadores como sujeitos centrais da revolução e esquecem do sujeito consciente que não nos permite avançarmos: a burguesia. Grande parte dessa dívida está na esquerda mundial, obviamente que não podemos tirar a culpa do stalinismo e mesmo a sua influencia nos demais partidos de esquerda, mas de fato, pouco se produziu nesse campo, deixando para outras correntes decorrerem sobre essa discussão, exemplo disso, Michel Foucault. Cabe a nós, hoje, conseguirmos identificar seus avanços e limites e avançar no fio de continuidade deixado por seus estudos – honráveis – uma vez que poucos se debruçaram sobre o assunto.

Se por um lado, isso indica a tarefa que nós, LGBTTTs organizados em partidos revolucionários, temos para responder. Significa buscarmos uma das conquistas que a revolução de Outubro de 1917, na Russia, trouxe para nós:


“A posição dos bolcheviques em relação ao homossexualidade,foi expressa em um panfleto escrito pelo médico Grigori Batrkis, diretor do Instituto Moscovita de Higiene Social. Os revolucionários russos afirmavam: ‘a atual legislação sexual da União Soviética é obra da Revolução de Outubro. Esta Revolução é importante não somente como fenômeno político que garante o governo político da classe operária, mas também porque as revoluções que emanam desta classe chegam a todos os setores da vida (...) Declara a absoluta não interferência do Estado e da Sociedade nos assuntos sexuais, sempre que não lesem a pessoa alguma e não prejudique os interesses de ninguém (...) A respeito da homossexualidade, sodomia e outras várias formas de gratificação sexual, que na legislação européia são qualificadas de ofensas à moral pública, a legislação soviética as considera exatamente igual a qualquer outra forma da chamada relação “natural” (aspas dele). Qualquer forma de relacionamento sexual é um assunto privado. Somente quando se emprega a força ou coação, e geralmente quando se ferem ou se lesam os direitos de outra pessoas, existe motivo de perseguição criminal’.

Obviamente também esta conquista da revolução foi destruída pelo stalinismo. Isto pode ser constatado, por exemplo, na edição de 1971, a Grande Enciclopédia Soviética, onde que lê: ‘homossexualidade é uma perversão sexual consistente em uma atração antinatural entre pessoas do mesmo sexo. Dá-se em pessoas de ambos sexos. Os estatutos penais da URSS, os países socialistas e inclusive alguns estados burgueses, punem a homossexualidade...’.”. (Texto retirado do site do PSTU, http://www.pstu.org.br/secretaria_glbt_programa01.asp ).

A construção sociocultural do macho, masculino, heterossexual, homem.

A combinação de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero:  macho, masculino, heterossexual, homem também foi construído historicamente e legitimada pelas necessidades da família patriarcal burguesa. A desconstrução desse padrão normativo (conhecido como heteronormativo) precisa ser feita de forma cuidadosa. Isso, não significa que essa combinação tenha que ser abolida, porém não pode ser encarada como algo natural/correta a todos os machos. Ou encarada como se o sexo biológico (macho/fêmea) necessariamente precisasse ser mantido. Até porque o sexo, visto como imutável: antes pelo atraso da ciência, com pouquíssimas pesquisas sobre o assunto e pouca intenção da burguesia em aprofundar esse avanço cientifico, hoje pela ideia reacionária de vangloriar o “natural” (natural, isto é, entendido por contrário do que é feito/produzido pelo homem. A mesma visão que a geografia conservadora muito ainda visível nas escolas sobre o que é natureza: o que não teve interferência do homem).  Essa reivindicação do natural, além de se conciliar bastante com a visão “biológica determinista” ou mesmo “religiosa destinada” nega os avanços científicos produzidos pela humanidade á serviço da manutenção da família tradicional. 
Já o comportamento masculino, isto é, visto como mais grosseiro, insensível, afastado ou excluído dos traços femininos (só existe em oposição ao feminino) e traz em si uma “essência” de gênero.  Essa concepção de essência pouco é levada até as últimas consequências. Pois traz em si, um conceito de uma natureza própria, já definida, já pré-estabelecida independente da classe, da sociedade, da época e da cultura. Como se os machos de todas as classes, todas as sociedades, todas as épocas e de todas as culturas sempre tivessem se comportado desta forma. Serve apenas para esconder uma das necessidades da burguesia de ter trabalhadores que não se abalem com essa vida de miséria fruto do capitalismo. Faz e cria-os como fortes e isentos de sensibilidade, tratam suas companheiras/companheiros como relações de propriedade – uma vez que se tornam uma relação econômica entre si – e mantem-se fortes o suficiente para vender sua força de trabalho e produzir a mercadoria, que adquirirá valor e preço, enquanto também deixa suas horas não pagas como parte do lucro do seu patrão. Além de reafirmar um sentimento de época, fortemente empurrado pelo capitalismo, de auto-suficiência e individualismo que pouco é compreendido como tal, mas sim, camuflado por uma "personalidade" ou "forma de ser", que expressam por si só, uma personalidade essencialista,, polarizando um pouco, aproxima-se de quanto os signos e a nossa essência - senão biológica, fruto da 'alma' - nos faz o que somos, ou seja, uma visão nada materialista, nada dialética, nada marxista.

A heterossexualidade atrelada a família patriarcal burguesa, por conta da procriação, isto é, a reprodução humana já constituída dentro de um núcleo familiar, onde estes homens (pais) precisam se posicionar como autoridade e repressor para que o filho siga seu exemplo, enquanto a mãe cumpre o papel social de providenciar a sobrevivência do marido e menos gastos para o patrão. Cumpre a mulher, este papel lavando seus uniformes, fazendo-lhe comida, cuidado dos filhos, servindo-o de válvula de escape e de companheira nas horas que lhe for necessário. A mãe, a mulher oprimida sem mais identidade de individuo, cumpre um papel insignificante socialmente, porque assim lhe foi imposto. E cumpre um papel fundamental para a manutenção da família patriarcal burguesa e para a sobrevivência desta combinação (modelo) de homem.
Agora, uma vez, a heterossexualidade desassociada da reprodução, esta passa a ser combatida. Quando deixa de cumprir seu papel na manutenção do sistema capitalista e torna-se uma forma de prazer para os proletários, é quando os discursos morais e religiosos aparecem. 
O que nos ajuda a desvencilhar a relação sexual da reprodução sexual, (heterossexual e homossexual, usada como justificativa da primeira correta e a segunda uma abominação) são dois fatores fundamentais. O primeiro, diferentemente dos demais animais (irracionais), nós humanos, jamais passamos pelo estágio de cio. Significa que nossas relações sexuais não são biologicamente determinadas pelo extinto e com ciclos pré-estabelecidos. Podemos ter relações sexuais independente do período que estamos (independente até do período fértil das mulheres). A atração física não está ligada – muito menos diretamente – com o sexo oposto mais forte e capaz de gerar descendentes mais capazes de sobreviver ao meio em que vivemos. Nossa atração está ligada diretamente com as associações e assimilações que adquirimos socialmente. Faz parte da construção, como dizemos anteriormente, iniciada na era primitiva, ou melhor, na infância. Em segundo lugar, a falta de informação sobre a ligação direta da relação sexual, ou propriamente da necessidade do esperma do macho fecundado pelo útero da fêmea para haver reprodução, impedia que a humanidade desde sempre tenha optado pela heterossexualidade por esses fins. Não é preciso buscar tão longe essa evidencia. Hoje, aos dez, onze anos, períodos considerados bem jovens (ao menos nos nossos tempos) muitas mulheres engravidam, exatamente pelo ato sexual não ter uma relação tão nítida e obvia com a reprodução dos seres humanos. 
 A sexualidade enquanto forma de existir no mundo, uma forma de gozar e manter relações prazerosas são combatidas pelo sistema capitalista. Se por um lado a moral cristã persegue as mulheres e LGBTTs, na tentativa de, para as mulheres, enquadrá-las no papel de mãe (este papel que exige passar por um processo de tornar-se assexuada, ou sufocá-la), por outro lado, os homens são educados com uma sexualidade violenta. Onde se expressa bastante em sua comunicação, com termos “arregaçar”, “foder”, “deixar sem sentar”. A lógica do sexo heterossexual, para estes homens, é doentia. O que é importante vermos aqui, ainda, é como essa repressão também é transmitida na marginalização do funk, por extremo moralismo e conservadorismo. Assim como a pornografia[4] – senão a própria prostituição – tem grande espaço na vida das pessoas. Uma vez que é uma forma de obter o prazer máximo, esse seria: corpos padronizados, expostos, disponíveis, sem a necessidade de se expor. A reprodução das contradições, na prostituição o nível máximo da opressão aos corpos, onde se é necessário vender-se a si mesmo, por preços tão baixos, para humilhações, satisfação alheia e em detrimento de diversas possibilidades de contaminação com DSTs, estupros e a própria morte. Tudo isso, a serviço do capital. E quem são essas mulheres e travestis? São as filhas proletárias – em grande maioria – que foram submetidas a essas condições. De onde vieram? Pra onde vão? Suas histórias pouco são retratadas, uma vez que a pressão de vender-se própria, significa uma dinâmica de vida distinta, uma objetivação para consumo do corpo, provoca uma necessidade de manter-se fisicamente atraente, com uma intensidade de vida e correria, que dificulta uni-las a nossas fileiras e libertá-las dessa condição.
Apesar de que os membros dessa combinação de características são privilegiados, pois, são os homens quem tem o direito de terem incontinência sexual. Isto é, enquanto as mulheres são educadas a não estarem disponíveis para sua própria sexualidade, os homens podem tranquilamente não controlar sua sexualidade e manter relações sexuais com diversas mulheres (isso também por serem heterossexuais) ocasionalmente, sem qualquer crítica.
Este modelo de homem – que deveria ser seguido por todos os demais machos, masculinos ou não, heterossexuais ou não, homens ou não – carrega consigo a alegria do pau. Isso é, a vantagem de ter um órgão genital que é exposto e bem visto socialmente. Indispensável – segundo a sua lógica de normatização – para alcançar o prazer e para se considerar uma relação sexual.
Outra expressão dessas vantagens é o avanço cientifico das pílulas azuis – Viagra – que prolongam a vida sexual dos machos. Nesse sentido, vê-se uma preocupação especial com estes em desenvolver meios para garantir sua sexualidade satisfeita. Enquanto o gozo da mulher é completamente ignorado.
O que pode ser óbvio entra agora com uma grande centralidade. Essa construção de gênero e da sexualidade não se dá de forma isolada. Outros fatores contribuem para onde caminha essa construção. A classe social e a cor de pele somam-se em como a sociedade te vê e te impõem novas pressões. Um homem – como citamos anteriormente – branco recebe uma facilidade de vida que será menor do que um preto receberia. Assim como um burguês não enfrentará dificuldades e tamanhas repreensões como sentirá na pele um trabalhador vindo da periferia. Esses dados determinam, para nós – os revolucionários – quem defendemos e quem sente essas opressões democráticas, mas também são responsáveis pela sobrevivência dessa ordem conservadora e repressora.Os negros e negras que constroem seu gênero sofrem uma opressão distinta e mais latente.
É importante que essa questão não passe com menor intensidade. A discussão negra - ainda mais aqui no Brasil - tem um papel estratégico para os revolucionários, se ligar aos trabalhadores e trabalhadoras exploradxs, do setor mais precarizado, é se ligar aos pretos e pretas. A cor da pele garante que este povo seja reconhecido em todos os espaços que circulam. Não há como separar seu dia-a-dia do racismo. Para as mulheres negras, não da para separar do machismo e nem do racismo. Se decidem assumir sua origem, com cabelos não alisados, se decidem não se esbranquiçar - assim como também se opta por não se heteronormatizar, e essa opção significa um combate diária consigo mesmo - então é apontada e discriminada claramente.  A ditadura para estes, é no corpo. Se sente, materialmente, pela sua existência.
Nesse importante resgate  ve-mos a participação dos Panteras Negras em Stone Wall, assim como as dicussões do povo negro realizadas no Lampião de Esquina, jornal de 1979 criado por LGBTs. A grande lição de resistência deixada pelos haitianos, a revolução dos escravos isurreitos , a sobrevivência e combate contra o genocidio de seu povo, é para os LGBTs, deve ser, a tradição de auto-defesa, de ataque aos opressores, igualmente vivenciado pelas travestis que - não por acaso - foram linha de frente de Stone Wall, foram, porque estavam materialmente mais preparadas. Porque a vida lhe exige preparo. Exige saber se defender, caso contrário, não saberemos se voltaremos todos os dias para casa.
            Isto também se coloca, como não é possível para qualquer um se construir. Somente a quantia financeira necessária para a modificações cirúrgicas mais os hormônios já inviabilizariam muitas e muitos de concretizarem sua construção. Ainda mais a falta de informações e saídas menos opressoras, faz com que muitas pessoas dispostas a construir seus gêneros – e colocam essa construção acima de tudo, como primeira hierarquia de vida – se matem por cirurgias clandestinas, por auto-medicações e auto-operações, etc.
Por último, não podemos deixar de colocar: o que os hormonios e as cirurgias trazem as TTs (travestis e transsexuais) além de afirmarem suas identidades? Quanto de normatização e refugio há nestas escolhas? A subversão, o questionamento da ditadura binária, a origem e a decisão de ter mudado são apagados pelas TTs quando atigem seus objetivos? Onde se encontra a Transgressão que o T representava para as subversivas travestis e transexuais que lutavam contra a policia, vide Stone Wall, e contra o genocídio de suas semelhantes?  
Muito dessas operações na busca de se auto afirmarem e reforçarem sua identidade para fora de si, trazem contradições como a omissão do passado, mantendo a concepção dualista do corpo hoje ainda muito legitimada pelas travestis e transexuais, o que contribuiu para o uso dos termos como “invertidos” ou “desviantes”.

E quais são os objetivos dessa construção, além das questões individuais? Há algum questionamento estratégico? O que de tão desconhecido e curioso não pode, para os revolucionários, ser um sinônimo em si de libertário e revolucionário.

*

            A necessidade de separar essa combinação especifica de uma norma fixa e obrigatória ou mesmo uma norma utilizada como parâmetro, como ponto de partido, fica visível e clara. Os revolucionários, não devem exigir o fim dessa combinação, porque esta combinação escolhida ou desenvolvida em outra sociedade talvez não provocasse tamanho dano. O que aqui se combate é a normatização de determinada combinação utilizada pela burguesia para determinar nossas vidas e comportamentos. À serviço de quem está nossos corpos, nossas vidas, nosso tempo? Hoje? À serviço dos grandes empresários e grandes capitalistas.

Por isso, é necessário compreendermos que a opressão que sofremos é uma opressão de classe. E como forma de implementá-la, nos dividem em divisões binárias de homens ou mulheres, brancos ou pretos, heterossexuais ou homossexuais, efetivos ou terceirizados, machos ou fêmeas, masculino ou feminino. A essência consiste em um excluir o outro. Um em oposição ao outro. Um em guerra com o outro. Nós, enquanto marxistas-dialéticos, não analisamos a realidade desta forma mecânica e conservadora. Mas somos capazes de enxergar o quanto fomos limitados a nos expressarmos e nos construirmos, mas que existimos enquanto seres humanos, capazes de transitar por todas as experiências e todas as formas de expressão. Que o determinante é a modificação constante. As inúmeras combinações não são estáticas e o processo de construção não se encerra, porque nem mesmo a morte pode ser a síntese. A morte, sem dúvida, encerra nossas ações e nosso raciocínio consciente, mas nosso corpo ainda se mantém em transformação até ter se transformado tanto a ponto de não mais conseguirmos – pelo menos hoje – mais o reconhecer, pois é nesta hora que o homem demonstra nunca ter saído da natureza, mas permanece e é em si, parte dela mesma.

A necessidade de nos afirmarmos e tomarmos atitudes para que expressem nosso gênero ou sexualidade demonstram a contradição de como encararmos a identidade. Como nos colocamos dentro de caixinhas e depois nós mesmos reprimimos nossas ações para preservar nossa construção.
A opressão que carrega o feminino – independente de ser homem ou mulher, fêmea ou macho – é visível. Os homossexuais, homens, que tem comportamentos mais femininos (entende-se agora por feminino gesticular as mãos, voz fina, cabelos longos, fragilidade, nojo por determinados animais <insetos>, etc) são mais oprimidos do que homossexuais com comportamentos masculinos (entende-se por masculino, em oposição ao feminino: não gesticular as mãos, voz grossa, cabelos curtos, força física, etc).
Muito disso também se encontra na busca pelo príncipe encantado, isto é, o modelo estereotipado do homem perfeito, que é exatamente o homem supracitado. Por este ser o padrão dos desejos, a grande maioria das pessoas acabam buscando estes como companheiros. As mulheres, travestis, transsexuais e os homossexuais buscam o mesmo homem. Obviamente, que isso gerará conflitos, uma vez que a subjetivação de todas em não alcança-lo e principalmente em não conseguir desenvolver atração ou desejos sinceros por outras combinações de seres humanos, os farão viver numa miséria sexual onde seus corpos não são aceitos e nem outros corpos são desejados, pois só existe um perfil de homem e um perfil de mulher (e só existe esses dois gêneros) para se apaixonar e se encantar, no mundo capitalista, onde a diversidade e a pluralidade são esmagados pelas necessidades econômicas.
A validação da masculinidade está baseada no ato de expelir a feminilidade e a homossexualidade dentro dos homens. A construção da masculinidade hegemônica requer total vigilância da parte dos homens sobre eles mesmos, separado das mulheres e da homoerótica. Torna-se um trabalho exaustivo, onde é preciso tomar cuidado e ficar atento a sua construção. Assim como as travestis que fabricam seus corpos, mas se constroem femininas através do que entendem por feminino, tomando posturas as vezes que reforcem sua feminilidade como forma de compensar suas expressões ou características físicas de macho.
            As relações entre pessoas do mesmo gênero se dão de diferentes formas. Isto é, os homens em si, estabelecem relações por misoginia e homofobia. A homofobia é uma parte intrínseca dessa constituição da relação. É através desses dois valores, que se auto-afirmam como homens, como machos, homens, heterossexuais e másculos e então desenvolvem uma relação por unidade em oposição à diversidade.


                                                                                             
Relações de poder: a necessidade de uma saída independente!

A construção da subjetividade assim como uma característica especifica dos setores oprimidos da sociedade se da pela necessidade de auto-defesa e combate diário. Quando se discute a importância, e o acerto estratégico, da unificação das opressões, se discute o combate a divisão de nossas fileiras, assim como também se discute, mesmo que de forma ainda incipiente, a resposta dos oprimidos, tornando-se seres independentes, responsáveis pela sua sobrevivência e auto-organização.
            Nesse sentido, é importante uma postura dos LGBTTs, assim como das mulheres e dos negros, que consiga deixar expresso esse combate – tanto feito consigo mesmo – agora externado. O condicionamento de nossos desejos em determinados padrões sociais – que nos excluem completamente – nos exige um retorno. Somado a isso, as tarefas que assumimos ao nos organizarmos enquanto classe e defendermos nossos irmãos e irmãs pela tomada do poder e a ditadura do proletariado nos constroem de forma também distinta.
É importantíssimo que nos rebelemos contra as normatizações de nossos desejos, sobretudo sobre a nossas submissões aos homens, aos heterossexuais e aos brancos. Com muito cuidado e atenção, para não cairmos no infantilismo ou no populismo, pois essa postura independente não significa de modo algum, a atingir o mesmo objetivo da burguesia que é separar nossas fileiras, mas sim, entender que dentro deste sistema capitalista, até mesmo nossos camaradas, nossos dirigentes, nossos amigos profundos, os homens, os brancos e os heterossexuais mais revolucionários estão bombardeados da ideologia dominante. Assim como nós mesmos, não estão isentos dos desvios. Mas a nossa vivencia enquanto preto, enquanto LGBTT, enquanto mulher nos impede de nos adaptarmos a democracia burguesa e as opressões naturalizadas pelo estado burguês.
            Existe uma relação de poder sobre nós, e isso é preciso deixar claro. Apontá-lo, para enfim darmos o devido combate. Não somos vitimas, somos revolucionários. Entendemos a opressão como uma opressão de classe, dada a todos nós, mas não podemos por isso, ignorar as demais opressões que sustentam o capital.
Se de um lado, o gênero, a cor e a orientação sexual se apresentam como uma relação de poder, onde as mulheres, negrxs e homossexuais são submetidos a inúmeras opressões, crises, dificuldades, para o lado oposto, a vida é facilitada e legitimada o tempo todo. Os homens, brancos e heterossexuais que não questionam essas questões, não se colocam dentro do balanço e do combate importantíssimo que precisamos avançar.
O controle exercido por estes – nem sempre, ainda mais no caso de nossos camaradas  definitivamente não é – de forma consciente. Mas materialmente isso se dá, porque não é um reflexo apenas das ações, mas do que elas representam enquanto fator social. As consequências para cada lado exercerá uma pressão e uma contradição distinta.
Nossa resposta a isso deve ser principista. Porque como nossa existência, determina nossa consciência, o desdobramento de nossas posturas abrem contradições ou superações. O nosso desempenho politico e pessoal também se relaciona diretamente   com isso. Resgatemos então, na história, os grupos que se auto-organizavam para defender-se e para atacar os inimigos.

            É exclusivamente a necessidade de sobrevivermos, ainda hoje, dentro do próprio partido revolucionário, dentro da própria esquerda, dentro do próprio movimento LGBT que esse grito e essa saída independente se torna fundamental. A necessidade de sairmos da defensiva, de se precisarmos falar merda, por quê não? Os homens heterossexuais só falam coisas importantes? Se por um lado, não combatemos os nossos camaradas, mas seus desvios e atrasos, por outro lado, não podemos nos deixar atingir por tamanha pressão subjetiva e objetiva de nos calarmos.

Não serão os brancos, nem os heterossexuais, nem os homens que nos emanciparão, este papel, nós mesmos iremos cumprir, por nós mesmos.

Nem a bolha partidária, nem os guetos! Como trotskystas, reivindicamos o mundo!
Os revolucionários, não podem depender do partido revolucionário em todas as esferas de sua vida material. Não viver dentro da bolha partidária – buscando ter relações profundas somente com os camaradas, ou uma relação amorosa (sexual) – nem os guetos, que vivem a parte do mundo real. Mas como trotskystas, defendemos e reivindicamos o mundo. É ele que queremos tomar para nossas mãos. Assim como deixemos o vermelho e o preto um pouco de lado, porque são todas as cores das quais sentimos falta e queremos usufruir. Lutamos para retomar a terra, as produções e o modo de vida que nos foi roubado. Mas é importantíssimo, que não esqueçamos que essa conquista não se dará por meios individuais. Pelo contrario, só será possível isso se desde já nos colocarmos a tarefa de reconquistar nossos espaços. Para isso, é preciso não nos adaptarmos com as pequenas conquistas – as famosas migalhas – que não nos enchem, nem nos satisfazem, concedidas pelo capitalismo. Não queremos uma parte do bolo, não queremos nos esconder ou nos refugiar nos guetos. Queremos ir e vir de todas as culturas. Queremos a diversidade espalhada, trocando, reproduzindo à serviço do avanço da humanidade.


'Ou sim ou sim'?

Para os revolucionários, a construção de gênero não está submetida apenas as vontades do individuo, mas está submetida as condições específicas que vivemos hoje. Não haverá uma construção livre de padronizações e livre de contradições enquanto reinar o capitalismo. Muito menos será uma construção emancipatória, porque os revolucionários entendem que a emancipação se dará através da tomada do poder e a derrubada política e física da burguesia. Não haveria outro modo de emancipar. E é claro, isto se dará pelas mãos de um sujeito histórico determinado pelas condições impostas pelo sistema vigente: os trabalhadores.
Como então, buscarmos, e em qual perspectiva construiremos nossos corpos e nossos gêneros? A prioridade dos revolucionários é uma saída individual de construção e emancipação, ou a construção partidária capaz de dirigir os processos da luta de classes à serviço da vitória de nossa classe? Não é possível que a defensiva dessa discussão - não é possível que para nós, os revolucionários, essa discussão seja ainda um tabu – e isso nos impeça de fazê-la.
Repito em todas as linhas sobre os revolucionários, porque é esta a tarefa que em tempos como os nossos, onde a história começa novamente a demonstrar o fim de um período de restauração burguesa (física: com a restauração do capitalismo em ex-estados operários; e subjetiva: subjetividade da classe operaria, da juventude e adaptação dos partidos de esquerda com a democracia burguesa, as leis, a preparação de quadros e dirigentes, etc).
Para nós, se reatualiza o período descrito por Lenin de crises, guerras e revoluções; do imperialismo como a véspera da revolução socialista; do processo de diminuição do nível de subjetividade e crescimento do da crise (e necessidade) de direção revolucionária.
Nos damos esta tarefa.

Se a construção de gênero e a busca do quem somos é uma decisão de 'ou sim ou sim', não há porque discutirmos. Não há discussão se não há possibilidades de mudança. Mas não é dai de onde partimos, mas sim, de qual a hierarquia? A construção de um partido revolucionário, a dedicação a forjar-se como dirigente, a busca por um aumento do nível teórico, se dar mais tarefas, refletir e intervir, também estão ligadas a uma decisão 'ou sim, ou sim'?

Eu, Virginia, construo-me não só de roupas, gestos e nomes. Construo-me de questionamentos e de revolta. A minha resposta as opressões é organizar a classe trabalhadora para encerrar essa vida de miséria. me proponho a dirigente, me proponho a lutadora revolucionária. Ser travesti não me basta, não me basta ser apenas uma combinação diferente. Me bastará somente a morte do capital, porque meu peito (seja ele representativo ou o que eu venha a construir) exige a sua queda.
Adeus, Capital. Nós, nos damos a tarefa de aniquilá-lo.



[1] Apesar da bissexualidade ser usada como uma compensação em muitos casos como “pelo menos ele/ela ainda gosta de homens/mulheres. É importante analisarmos que a teoria queer, apesar de todas as debilidades que rapidamente são apontadas neste texto, traz uma interessante caracterização de uma homonormatização. Essa normativa criada para os homossexuais, os coloca em mais subdivisões e promove a homofobia internalizada. Onde todos buscam ‘ser limpinhos’ – isto é, mais próximo do padrão heterossexual possível – isso por um lado. Por outro, a bissexualidade pouco é reconhecida como uma sexualidade. Mas sim, apontada por ambos os extremos (hetero e homo) como uma indecisão, ‘falta de vergonha’, ‘promiscuidade’, etc. Reforça ainda mais a ditadura binária e consequentemente a visão de contraposição, de opostos, de antagônicas entre a sexualidade, assim como se expressa nas identidades. (Essa nota imprescindível se queremos travar uma luta de conjunto contra as opressões, é fruto da contribuição e aportes de minha camarada Najila).
[2] Esse trecho foi extraído de uma palestra de Aline Monge – mestranda da UNESP, militante da LER-QI – na Fundação Santo André, na inauguração do grupo de estudos: Marxismo e Sexualidade.
[3] Benedetti, Marcos Renato. Toda Feita. Corpo e Gênero das travestis.
[4] Apesar de pouco se discutir a respeito da pornografia - principalmente no campo da esquerda - mas é importante ressaltar como a repressão sexual empurra os jovens a pornografia, como uma saida, ainda que pregue o individualismo, também a autonomia do prazer. É um assunto que requer outro texto, mas é importante fazer a critica as industrias pornograficas a serviço reprodução da padronização, reafirmando o desejo nos esteriotipos. Entretanto, a pornografia não pode se limitar apenas a crítica a industria pornografia. É sem dúvida, um debate importante para avançarmos como atingir essa forma de expressão e de gozo de forma revolucionária.

A ofensiva aos LGTTBIs e a necessidade da esquerda defender os direitos democráticos

                Não é de hoje que assistimos discursos como o promovido pelo presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, no final do mês de setembro em uma entrevista à CNN onde dizia que “Apoiar a homossexualidade é coisa de capitalistas de linha dura, que não se importam com os autênticos valores humanos”.[1]  Desde a burocratização da União Soviética e a perda da conquista LGTTBI da revolução russa, onde além de desvincular a interferência estatal na sexualidade individual ainda reafirmava a posição da união soviética de que a homossexualidade era tão natural quanto a heterossexualidade. Porém um discurso similar ao de Ahmadinejad  pode ser encontrado na União Soviética com a stalinização do Estado Operário,  na edição de 1971 da Grande Enciclopédia Soviética, onde se lê: “homossexualidade é uma perversão sexual consistente em uma atração antinatural entre pessoas do mesmo sexo. Dá-se em pessoas de ambos sexos. Os estatutos penais da URSS, os países socialistas e inclusive alguns estados burgueses, punem a homossexualidade...”.

                Além destes discursos, recentemente foi noticiado pela folha de São Paulo a descoberta de forças de segurança oficiais no Iraque, criadas para perseguir os homossexuais, onde segundo a reportagem, 17 dos jovens entrevistados disseram terem sido perseguidos individualmente e todos terem amigos ou conhecidos mortos.[2]  Junto a tamanha repressão a sexualidade, no Irã a alternativa que muitos homossexuais encontram para não serem perseguidos por sua orientação sexual era passar pela cirurgia de mudança de sexo, o que exprime o quão opressor é este país, onde os indivíduos são obrigados a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo que significa uma alteração física no seu corpo e no seu gênero sem se identificarem com este novo corpo/ novo gênero. Isso tudo para poderem expressar sua sexualidade sem receber a pena de morte. Como se não fosse o bastante, em Maio deste ano, o Irã anunciou que não mais contribuiria para os custos da cirurgia de mudança de sexo, o que impõem que milhares de transexuais não possam  adequar seus corpos com seus respectivos gêneros que lhes convém, assim, não garantindo o pleno direito dos indivíduos de se auto determinarem e terem sobre si o direito de seus corpos. Deixando mais uma vez evidente que estes direitos só serão garantidos aos que possuírem dinheiro para realiza-lo. [3]

Diante de tamanha ofensiva moral e da falta de organizações LGTTBIs com independência de classe, que defende a classe trabalhadora e entenda a relação entre as demandas democráticas e a revolução socialista, como única forma de garanti-las plenamente, é preciso abrir um sincero debate sobre a defesa dos LGTTBIs que permanecem com sua opressão vigente e naturalizada pelo Estado burguês. É preciso buscarmos as ferramentas do marxismo revolucionário e do marxismo com predominância estratégica representado por Trotsky que nos garante uma analise e uma perspectiva revolucionária para discutirmos a questão LGTTBI, hoje afogada pelas teorias pós-modernas que nada podem garantir a estes indivíduos.

O Estado como reprodutor das opressões para sustentação do sistema vigente.


Se retomarmos a resposta de Marx à Bauer, percebemos que a nossa estratégia não se trata de obter somente a emancipação politica, (estes são os reformistas, que ainda estão presos à lógica de modificação da sociedade através de reformas) mas de atingir a emancipação humana. Escrevia Marx: “O limite da emancipação politica fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre, sem que o homem seja livre (...) A emancipação politica de fato representa um grande processo, não chega a ser forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação pratica”.

Se tomarmos essa citação para a questão LGTTBI percebemos que a reprodução da família monogâmica heterossexual não precisa vir através de uma lei ou de uma disciplina escolar, mas é parte de uma imposição ideologia que fomenta estes sonhos e essa ‘realização’ que só existe no ideal, não na realidade das travestis que vivem em media 35 anos, ou por doenças (fruto da precarização da vida e da prostituição como a forma majoritária de sobrevivência) ou pela transfobia seja ela pelas mãos de um nazista, um policial, um homofobico comum ou entre as próprias travestis que são educadas à miséria e a competição.
               
                Por isso se não há um combate direto ao Estado, entendendo ele como reprodutor não apenas da moral vigente que por si só é homofobica, mas compreendendo que ele é o produto da divisão da humanidade em classes e que reproduz essa divisão, mantendo a classe trabalhadora semi-escravizada e a burguesia com seu domínio político e econômico. É a opressão de uma classe sobre a outra, ou ainda como diria Marx: "um comitê de negócios dos capitalistas". Acusamos o Estado, a propriedade privada e a burguesia de reprimir diariamente nossa sexualidade. De submeter nossas relações a meras relações econômicas. De criar entre nós relações utilitaristas e sexistas. De relações de poder, de posse, de troca e venda.

NO BRASIL AS ELEIÇÕES SÓ COMPROVARAM QUE AS MILHARES DE MULHERES MORTAS POR ABORTOS CLANDESTINOS, TRAVESTIS E HOMOSSEXUAIS MORTXS PELA HOMOFOBIA SÃO MERAS MOEDAS DE TROCA PARA OS PARTIDOS BURGUESES!

                Não muito diferente do que as medidas mais repressoras do Irã e do Iraque contra os homossexuais, no Brasil que é conhecido como o país mais homofobico do mundo, tendo 1 homossexual assassinado a cada 35 horas. Durante essas eleições, assim como em 2010, pouco se tocou nos assuntos “polêmicos” onde o caráter de classe e sua moral covarde e hipócrita deixavam claro para quem governam os partidos da ordem.
                A própria mídia anunciou que o tema do aborto em 2010, durante as eleições de Dilma, agora seria o kit contra a homofobia (intitulado pejorativamente de kit-gay) para as eleições do Haddad. [4] Obviamente, nem PT nem PSDB defendem os homossexuais, muito menos os que pertencem as fileiras da classe trabalhadora, assim como continuam sendo responsáveis pelas milhares de mortas por abortos clandestinos, também se responsabilizam não só por submissão a igreja e as morais religiosas, como também parte da normatização dos corpos e da sexualidade. São cumplices da igreja católica e dos pastores como Silas Malafaia[5] que colocam um discurso falso e reacionário dos homossexuais quererem superproteção das leis, sendo que esta para além disso, é o direito a vida plena, a plena realização pessoal, desenvolvimento livre da sexualidade, direito ao trabalho para as travestis.

                A esquerda infelizmente avançou pouco nesse debate nessas eleições. O PSOL que muito apareceu como “contra a homofobia” demonstrou ao longo da campanha eleitoral seu papel conciliador de classe (com apoio de partidos burgueses como DEM, a frente única com PCdoB), sem contar a entrevista onde o principal candidato deste partido, Marcelo Freixo, ao ser questionado se faria corte de ponto caso fosse eleito, sua resposta foi “depende”. Nós, da Juventude ÀS RUAS, gostaríamos de saber como pode se combater a homofobia, sem independência de classe e se é possível fazê-lo enquanto se ataca a classe trabalhadora, com cortes de ponto, etc.

Já a candidata Ana Luisa (PSTU) divulgou um vídeo da parada gay onde discutia a necessidade de encerrar os ataques aos homossexuais. Embora o vídeo esteja vazio de conteúdo, e a defesa da candidata seja bastante genérica, é preciso reconhecer que este partido tem um acumulo sobre a questão LGTTBI que se expressa em diversos artigos públicos em seu site. Onde há um resgaste dos movimentos LGTTBIs combativos, como o grupo francês FHAR (Frente Homossexual de Ação Revolucionária) ou mesmo o grupo SOMOS, do Brasil, que em 1980 foi até o estádio da Vila Euclides e junto a uma das maiores greves da época, demonstraram seu apoio a luta dos trabalhadores, e diferentemente do que pensavam os demais setores do movimento LGTTBI,  foram ovacionados.
Mas isso demonstra ainda mais a debilidade estrutural desse partido que apesar de tanto acumulo na questão, pouco consegue usar das lições da classe trabalhadora, e dos princípios do marxismo revolucionário que visa a unificação da classe trabalhadora. Que evidencie as opressões diretamente ligadas a exploração. O que está para além de um discurso da construção do partido, mas compreender a questão LGTTBI como uma forma de super exploração e uma medida da divisão de nossas fileiras.

Por isso, nós da LER-QI e da Juventude ÀS RUAS, para além de nos colocarmos contra todas essas medidas repressoras que decorremos nesse texto e pela hipocrisia dos partidos burgueses em levantarem defesa aos LGTTBIs, fazemos um chamado a esquerda anti-capitalista a levantar uma defesa aos LGTTBIs, na perspectiva de ligar essas demandas sob as bases do marxismo revolucionário, da independência de classe, da unidade entre estes setores com a classe trabalhadora, mas principalmente, com o objetivo claro de avançar da luta pela emancipação política para a emancipação humana, da conquista de nossos direitos, para a conquista de uma nova forma de vida. Lutemos pelo direito a vida plena, por um mundo livre de opressões e de classes sociais. Lutemos pelo fim do machismo, do racismo e da homo-lesbo-transfobia. Lutemos pelo fim do capitalismo e pelo fim da exploração humana.

Lutemos, pois temeremos mais a miséria do que a morte.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Um debate sobre o beijo gay e a estratégia da visibilidad

Virginia Guitzel e Eduardo Goes

Beijo de Félix e Nico, personagens de Amor à Vida.
      Na última sexta-feira, reprisado no sábado, pela primeira vez a emissora Rede Globo exibiu, e em horário nobre, um beijo homoafetivo entre dois homens. A esquerda, os movimentos de direitos humanos e LGBTTIs e muitos LGBTTIs comemoram-no como uma vitória. Para entrarmos nesse debate é fundamental expressar que Félix e Nico, personagens da telenovela Amor à Vida, representados, respectivamente, por Mateus Solano e Thiago Fragoso, são a expressão de um romance que conserva os valores burgueses: o casamento, a constituição de uma família monogâmica e a propriedade. A televisão, como uma das ferramentas de massas fundamentais para a dominação da burguesia, só pode transmitir seus valores e, nesse sentido, garantir a perpetuação da ideologia das classes dominantes. Assim, tal beijo é uma declaração aberta de que na democracia dos ricos, sob o capitalismo, a burguesia nacional pode conviver com parte, grifo proposital, dos LGBTTIs, incluindo o nicho de mercado que trazem consigo (o que chamamos de Pink Money).
Manifestantes em ato exigindo justiça por Kaique Augusto.
      Muitos homossexuais assistiram ao último capítulo da novela emocionados, o que não poderia ser diferente diante de tamanha homofobia existente em nosso país. O Brasil é reconhecido como o país mais homofóbico do mundo (superando países que têm legislação específica para criminalização da homossexualidade, alguns com pena de morte aos homossexuais), e aqui, aos 18 dias de 2014, já somavam-se mais de 23 LGBTTIs assassinados. A morte de Kaique Augusto, no dia 11 de janeiro, segue impune e silenciada pelo malabarismo organizado pelas polícias e seus comparsas, que forjaram um suicídio, o qual segue sem explicações elementares. Os pactos do governo do PT com a bancada evangélica e a histórica relação amorosa desse partido com o Vaticano foram os responsáveis pela tentativa de retomar a “cura gay”, extinta a mais de 23 anos, desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade (antes com o sufixo -ismo) da classificação internacional de doenças. Nesse contexto, como poderiam os homossexuais, estando acostumados a sua inexistência política ou a não serem representados nos programas de massa e nos debates abertos nos mais diversos âmbitos da sociedade, não se emocionarem?
      No entanto, ao compreendermos que os LGBTTIs sintam-se representados ao verem um beijo gay – afinal, sempre foi cena proibida e isso é parte de reconhecermos a homofobia vigente –, precisamos abrir um debate profundo não sobre o beijo em si e todas as polêmicas que vêm se desenvolvendo, que acabam caindo em ataques, calúnias e questões mínimas que nada contribuem para os revolucionários e os setores oprimidos avançarem na conquista de suas demandas. É preciso debater os limites da visibilidade (LGBTTI, que impulsiona a ordem dessa sigla inclusive) como estratégia do movimento LGBTTI em particular, mas dos movimentos de setores oprimidos em geral.

O papel da luta por visibilidade e os limites dessa estratégia

      A influência do pensamento pós-moderno como orientador da organização LGBTTI, hoje, é marco fundamental do retrocesso da reflexão estratégica na luta pela livre expressão das sexualidades e construção de gênero. O momento em que foi elaborada – em meio à restauração capitalista nos países do leste Europeu e ex-URSS, com a profunda vitória subjetiva disseminada por muitos ideólogos burgueses como “fim da história” e “vitória do capitalismo”, bases que solidificaram as democracias burguesas dos países imperialistas que conquistavam o “bem estar social” como as máximas do desenvolvimento humano – diz muito sobre essa linha do pensamento. Linha muito refletida em Focault e atualmente centrada em Judith Butler (uma das principais referências das transfeministas e do conjunto do movimento Queer), teóricos que, ainda que ofereçam avanços no pensamento subjetivo sobre a sexualidade, demonstrando-as a partir de desconstrui-las em formas da construção social – desnaturalizando a heterossexualidade como algo divino ou biológico – contrapondo-se ao determinismo biológico (que determina o gênero e a sexualidade a partir do nascimento) e concluindo pela total desconstrução de perfis eternos de sexualidade e de identidade de gênero (sempre um, em contraposição ao outro, isso é, constrói-se a partir da exclusão do outro), esbarram no limite – não tão menor, ou desconsiderável – de como criar condições para que todas essas potencialidades corretamente apontadas possam ser realmente exercidas pelos indivíduos.
      Ao abandonarem as contribuições de Marx e Engels, e de todo o legado marxista também produzido por Lenin, Trotski e Rosa Luxemburgo, tais autores que abertamente retomam Hegel e outros idealistas avançam na concepção de que o “discurso tem poder por si”, de que a “fala constrói” e, a partir disso, se propõem a constituir uma contracultura paralela e pacífica com os marcos do sistema capitalista. Ignorando que, acima do discurso utilizado, existem bases sólidas e materiais que determinam a realidade de nossa sociedade dividida em classes.
      Muitos dizem que “antes de lutar por nossos direitos, é preciso existir”. Em última instância, estamos de acordo que os mortos não podem lutar, nem mesmo por suas vida – porque já não as possuem. Mas é a visibilidade que nos faz “existir”? Enquanto o tal beijo era televisionado – com todos os limites claros de conservadorismo naquela cena –, enquanto o casal homoafetivo dava uns selinhos frouxos, Edith – outra personagem da novela – saía pela rua seminua com seu namorado/amante sem camisa, beijando-se e dançando sensualmente, insinuando cenas sexuais.
      É importante ver que essa estratégia da visibilidade, organizada pelos movimentos LGBTTIs e adotada por certa esquerda centrista muito influenciável que executa claramente a separação entre “movimento de oprimidos” e “movimento revolucionário”, reivindica o beijo gay como uma vitória ou conquista ensimesmada, colocando como ponto de partida a necessidade de sermos assimilados pelo sistema capitalista e a ideia de que os LGBTTIs seguem sem direitos e oprimidos por uma “ignorância” (quase que inocente) das população em entender esses valores. Tal estratégia acaba por ignorar variadas formas de dominação burguesa, e que a própria homofobia se aplica à divisão das fileiras operárias para facilmente superexplorá-las, e também que, aqueles que agora nos permitem sermos vistos, impõe-nos o papel ideológico de que não se pode decidir sobre nosso próprio corpo, nossos gostos, nossa sexualidade e nosso futuro.
Selinho do jogador Emerson Sheik, do Corinthians, em amigo.
      Parece-nos muito mais importante, nessa perspectiva, do que os selinhos emitidos pela Globo o papel do jogador Emerson quando abriu grande discussão, a partir de um dos lugares mais homofóbicos de nosso país, o futebol brasileiro, ao postar foto sua dando selinho em um amigo. Logo depois, teve de retroceder, é verdade. Mas o papel político sincero que aparecia naquele momento foi, sem dúvidas, muito mais de enfrentamento com a real opressão do que qualquer tentativa de cooptação como a que então propõe a rede Globo – o de sermos os gays aceitos pelo capitalismo.
      Não nos basta aparecer! Não queremos apenas sermos vistos, e pelos limites das lentes da reacionária classe dominante brasileira. Existimos e temos disposição à luta. As barreiras impostas aos LGBTTIs são muito mais altas e sólidas que as dos dramas familiares representados! Que faremos agora? É necessário de uma vez por todas, e, sim, aproveitando o espaço aberto pelo debate em torno do aclamado beijo, desde nossos locais de trabalho, entidades estudantis e sindicatos, superando o freio das burocracias, avançarmos na luta por direitos que esbarram nos muros do próprio capitalismo. A homofobia, o machismo e o racismo, e mesmo a luta de determinados setores em um suposto combate a essa formas de opressão, dividem-nos e nos enfraquecem. 
      Organizar os sindicatos e as entidades que a esquerda conquistou nos últimos anos para fazer um sério debate, no seio do movimento operário, sobre a necessidade de se colocar ombro a ombro nessa luta com os setores oprimidos está no horizonte dessa esquerda? Organizar comissões de investigação, independentes do Estado e de seu aparato jurídico comprometido com os interesses da burguesia nacional, no caso de agressões e assassinatos, fortalecendo junto a entidades estudantis, organizações de direitos humanos e sindicatos a única aliança revolucionária, entre oprimidos e trabalhadores, capaz de colocar em cheque todas as expressões da miséria imposta pelo capitalismo está no horizonte dos movimentos LGBTTIs? Podemos tomar a tarefa de utilizar o espaço aberto pelo "beijo gay" para discussões em todos os locais, demonstrando que somente os LGBTTIs ricos podem adotar, ter uma casa na praia, serem felizes e respeitados, segundo a Globo e os que ela representa? E quanto aos outros setores LGBTTIs? Nossa auto-organização, a superação da homofobia, de todas as opressões e do presente regime de exploração, podem ser conquistadas porque "agora fomos vistos"?
  
Por um Estado verdadeiramente laico! Pela separação efetiva da Igreja do Estado! Fim do acordo Brasil-Vaticano!

Pelo direito a nossos corpos, à livre construção e manifestação de nossas sexualidades e gênero!

Criminalização da homofobia já! Comissões independentes do Estado, compostas por familiares das vítimas de homolesbotransfobia e organizações de direitos humanos, entidades estudantis e operárias para investigação e debate sobre a punição dos agressores!

Que todas as entidades estudantis e sindicatos tomem para si a luta dos setores oprimidos! Pela união de nossas fileiras e real conquista de direitos!!! 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

QUEM MATOU KAIQUE? BASTA DE VIOLÊNCIA AOS HOMOSSEXUAIS E TRAVESTIS!

No sábado 11/01, Kaique Augusto, 16, jovem negro e homossexual, foi visto pela ultima vez por seus amigos após sair de uma balada gay no centro de São Paulo. Foi somente dia 14/01, após incessantes buscas e idas infrutíferas ao IML, que a família conseguiu encontrar o corpo de Kaique, que steve todo esse tempo no próprio IML. Kaique havia sido brutalmente espancado, possuía hematomas e marcas de violência no rosto e no corpo, seus dentes haviam sido arrancados e uma barra de ferro havia sido encravada no meio de suas pernas. Nesta mesma semana, dia 15/01, em Uberaba, a travesti Toni Gretchen, de 50 anos, foi assassinada com vários tiros após ameaças de morte e cobranças do pagamento do “pedágio” no ponto de prostituição.
Essas mortes, motivadas claramente por homofobia e transfobia, são parte do aumento da violência contra homossexuais e travestis, que tem ocorrido no país nos últimos anos (durante o governo petista aumentou em 117%, de 2003 a 2010). Nos primeiros 16 dias deste ano, 18 casos de assassinatos de homossexuais foram noticiados pela mídia. Esse aumento da violência contra xs homo e transexuais tem ligação direta com o avanço ideológico reacionário levado à frente pela bancada parlamentar fundamentalista, que se baseia nos laços profundos do Estado com a Igreja e se legitima com a defesa cristã da “moral e dos bons costumes”. Isso ficou claro tanto na posse de Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, com o aval do governo federal e da maioria absoluta dos deputados durante 2013, quanto com a vinda do Papa para o Brasil em meio às mobilizações nacionais da juventude. Todas as medidas dos governos com relação à diversidade sexual, longe de significarem um fim aos casos de violência contra xs homo e transexuais e um progresso no sentido de uma sociedade mais igualitária e sexualmente livre, tem polarizado a sociedade cada vez mais, e nessa polarização, o lado que o Estado e as suas instituições tomam é sempre oposto ao lado dxs homo e transexuais.

Contra a impunidade dos assassinatos de homo e transexuais no Brasil!
Nenhuma confiança no Estado e nas suas instituições!

Com relação ao Kaique, a Polícia Militar abriu B.O. na 2º DP (Bom Retiro), dizendo ter encontrado o corpo sob uma ponte e alegando suicídio, o Delegado da Polícia Civil registrou assim o caso dizendo “não ter detectado nenhum indício que pudesse contrariar essa informação”. Os médicos peritos do IML, ligados à Polícia Civil, somente confirmaram que o corpo de Kaique estava lá após três tentativas frustradas da família em procurá-lo no próprio IML, e justificam os hematomas no corpo alegando deterioração pelo tempo que lá teria permanecido fora da geladeira (o motivo alegado é superlotação), justificam a desfiguração no rosto com a suposta queda da ponte e dizem desconhecer a existência da barra de ferro transfixada ao corpo (sic!). No caso de Toni, todos sabemos que a grande maioria das mulheres e travestis em situação de prostituição são coagidas a pagar ‘tributo’ a policiais militares que rondam as ruas (pontos) para não serem reprimidas, o que eleva essa podre instituição e seus membros também ao título de cafetões e aliciadores.
A serviço dos interesses de quem está tanta enrolação e informações incoerentes sobre a morte de Kaique? O que e quem se quer encobrir? Não podemos ter nenhuma ilusão nas instituições deste Estado, menos ainda na Polícia, seja ela civil ou militar. Seu racismo é evidenciado cotidianamente nas favelas e periferias, contra a juventude pobre e negra, e agora é deixado ainda mais explícito na repressão feroz aos “rolezinhos”. Seu machismo é compreendido por todas as mulheres que por algum motivo tenham precisado ir às Delegacias da Mulher. E sua homofobia se escancara em cada violência ou assassinato de umx homossexual ou travesti, seja pela participação direta, seja pelo constrangimento, humilhação, omissão e descaso ao tratar de vítimas de homofobia.
Há anos está em tramitação o PLC 122/06 que criminalizaria a homofobia. Muitos homossexuais têm se agarrado a essa luta com a esperança de ser uma via para combater a homofobia em nosso país. Infelizmente, setores da esquerda e dos movimentos sociais defendem essa lei de maneira a criar ilusões de que por aprovações de leis poderíamos acabar com a discriminação no trabalho, nas escolas, e tantos outros espaços públicos A grande questão que deve ser discutida é quais seriam os interesses do Estado em promulgar uma lei que vai contra toda a ordem vigente baseada de forma aberta na opressão e na perseguição aos homossexuais. Temos a experiência da Lei Maria da Penha, e da criminalização do racismo, e vemos diariamente esse próprio Estado e sua justiça legitimarem o feminicídio e o genocídio contra o povo negro, seja culpabilizando a mulher, seja marginalizando o negro. Assim como junho deixou claro para os governantes que não estávamos nas ruas só por 20 centavos, temos que gritar bem alto que não é só pela PLC 122, é pela naturalização da diversidade sexual e pela livre construção de gênero. E que nos colocamos não somente contra a polícia que persegue, mata e tortura nas periferias, mas contra todo esse aparato jurídico (judiciário, executivo e legislativo) que está a serviço de manter os pactos do Estado com as instituições religiosas e contra os trabalhadores e a população pobre, negra e LGBTTI.

Resgatar com a juventude de junho o espírito das travestis e homossexuais de Stonewall

A juventude que saiu às ruas em junho exigindo seu direito à cidade, contra as tarifas do transporte, hoje sai às ruas “de rolezinho” para exigir o seu direito ao lazer, ocupa os centros comerciais e estacionamentos dos shoppings contra a proibição dos bailes funks na periferia e os toques de recolher. Kaique Augusto é parte dessa juventude que quer dar um basta à segregação imposta em nosso país, que em São Paulo divide a periferia do centro da cidade, que impede a juventude negra de ter acesso ao lazer e à cultura, que faz dos bairros periféricos grandes bairros-dormitórios, que impede que a juventude possa expressar abertamente sua sexualidade e conhecer o seu corpo e o seu prazer. É contra esse Estado, os seus governos e os partidos do seu regime que a juventude se levanta e exige seus direitos!
Nós, que nos organizamos como “Juventude às Ruas” estamos presente no Lgo. do Arouche, neste ato, em solidariedade aos familiares e amigos de Kaique Augusto e tantos outros Kaiques que silenciosamente são assassinados por este Estado. Estamos aqui para exigir investigação e justiça para a família de Kaique, o que só é possível se for organizada por uma comissão, independente do Estado, formada pelos familiares, membros dos Direitos Humanos e organizações políticas de gênero e sexualidade. Estamos aqui para resgatar o que de realmente revolucionário deixou as lições do levante de Stonewall, dxs homo e transexuais contra a violência policial: que foi a organização dxs homo e transexuais para garantir sua defesa; que foi nenhuma confiança nesse Estado; que foi a compreensão que a garantia de fato da liberdade sexual só pode ser alcançada superando o sistema social e econômico do capitalismo, o qual, para existir, se apoia na miséria sexual e, portanto, na repressão sexual dos que não se submetem à miséria normativa imposta; e, principalmente, que é somente se organizando com a classe trabalhadora, aqueles que têm nas mãos as ferramentas para transformar essa ordem econômica e dar impulso a uma nova organização social, que é possível lutar pela liberdade sexual.

* Investigação e justiça! Por uma Comissão Independente do Estado para averiguar, julgar e punir os responsáveis pela morte de Kaique, Toni e todx homo e transexuais!
* Pela construção de áreas e espaços públicos (praças e clubes) de lazer, cultura e prazer para a juventude!
* Basta de genocídio ao povo negro! Fim da polícia!
* Basta de violência contra homo e transexuais! Educação sexual nas escolas organizada pelos professores, estudantes e agremiações estudantis e sindicais!

NÃO ESQUECEREMOS, QUEREMOS SABER:
CADÊ O AMARILDO? QUEM MATOU KAIQUE?