terça-feira, 21 de abril de 2015

Verônica deu visibilidade à realidade de milhares de mulheres trans negras no Brasil


Há dez dias desde que Verônica foi presa e torturada pela Policia Militar de São Paulo, a redes sociais se tornaram uma verdadeira guerra de informações, polarizando opiniões e produzindo um ativismo virtual em defesa de Verônica nunca antes visto. A campanha #SomotodosVeronica com mais de 19 mil curtidas gerou uma profunda ampliação do debate sobre as identidades trans que saiu das redes virtuais e tomou as conversar nos bares, nos locais de trabalho e nos espaços de juventude. Uma clara demonstração do potencial ascendente da força que a luta contra a dominação de nossas identidades e de nossas múltiplas sexualidades vem ganhando no país desde Junho de 2013.

Todavia, a complicada situação que envolve a agressão entre vizinhos, nos coloca uma reflexão importante sobre o papel do Estado e da polícia diretamente ligado a profunda violência e assassinatos contra às mulheres cis* e trans e os limites da democracia burguesa e a “igualdade das leis e direitos”. Esse caso levanta muitos debates que neste artigo não daremos conta de tratar. Nos dedicaremos, frente a necessidade de cuidar da integridade física e psicológica de Verônica, defende-la contra o Estado responsável pela gigantesca desigualdade de gênero, do feminicidio e as reviravoltas nos direitos sociais.  (*Cis: É a identidade de gênero, também construída socialmente, de homens ou mulheres não trans. Isto é, que são definidas pelo reconhecimento, identificação e expressão determinado de acordo com a lógica normativa de identidade correspondente ao órgão genital: mulher-vagina. Homem-pênis).


Visibilidade para humilhar ou cooptar 


Partindo de que não há igualdade de vida, e nem de lei (!!!) para milhares de travestis, homens e mulheres trans e pessoas não binárias (que não se reconhecem nem como homens, nem como mulheres), a luta por visibilidade veio ganhando contornos mais profundos. Ora ganhamos visibilidade quando sofremos ou cometemos violência ora quando está atrelada a um novo nicho de mercado, para um setor da pequena burguesia LGB (e muito menos)T. As fotos de Verônica assim como os vídeos de homossexuais agredidos na avenida Paulista, Kaique Augusto, João Donati, Geia Borghi, Piu, Marcos Vinicius, Indianara são visibilidades para humilhar e estereotipar, uma forma de “marcar posição”, que nos trataram como animais de caça (origem da palavra viado) e que a cada nova vítima – filmada e torturada – vão mais aterrorizar e nos colocar na defensiva.

Quem é travesti ou do meio LGBT não apenas sabe, mas sente a violência sistemática que persegue em cada olhar maldoso, nas risadas humilhantes, nos comentários indiscretos, na condição de prostituição compulsória, na hiper-sexualização, na sexualidade trans e homossexual tratada como piada, no constrangimento ao ter de utilizar o nome de registro, na rejeição da maioria das famílias, de ser vista como doente, pecadora ou criminosa. Para afirmarem que somos loucas, só basta recorrer a Organização Mundial de Saúde que ainda hoje carrega o Condigo Internacional de Doenças o F-64, enquadrando a identidade trans e travesti como parte das doenças mentais. Qualquer mulher trans está sujeita a ser Verônica, por reagir à sua opressão de maneira desorganizada, por conta própria, por desespero ou como foi este caso, por desconfiança de transfobia.

A profunda desigualdade de gênero que sofrem as identidades trans começou a ser questionada em maior escala com esta campanha, mas não conseguiu ainda encontrar o caminho para transformar este caso particular numa verdadeira denuncia de um problema social, que atinge diversas classes sócias, mas que principalmente diz respeito ao movimento de mulheres, trasfeminismo, movimento negro e a esquerda.


Nem igualdade na lei, nem igualdade da vida: “se eu não existo, porque cobrás de mim?”



Lamentamos e não concordamos com que Laura tenha sofrido qualquer tipo de violência de Verônica e acreditamos que essa atitude tenha ganhado tamanha visibilidade para tentar desfazer o foco das denúncias das torturas, profunda humilhação e desrespeito à identidade trans. É importante constatar que em todos os casos que ganharam visibilidade sobre agressões ou assassinatos, que a polícia e a mídia se posicionam alinhadas sobre os casos tentando ao máximo rever as provas, as declarações, os familiares e as próprias vítimas para no resultado final não reconhecer estes crimes como homo-lesbo-transfobia.

Ainda que achemos completamente equivocado a agressão cometida por Verônica, não concordamos que justamente este Estado acusado e comprovado culpado por transfobia se responsabilize por sua integridade. Seria muito mais legítimo reunir os moradores do edifício, a travesti e a idosa agredidas, assim como o movimento trans junto aos movimentos de direitos humanos e familiares de Vêronica para fazer um debate buscando responder de maneira fraternal o ocorrido. Somente com um debate entre todos que realmente se preocupam em encontrar uma solução, poderíamos demonstrar as consequências de respostas individuais e assim ser uma maneira educativa para todos para que ações como essa não venham a se repetir ou parecer como “válvula de escape” para tamanha situação de opressão que as pessoas trans são submetidas. Somente assim é possível fazer com que os homens e mulheres trans, as travestis e os demais setores oprimidos possam avançar junto com o movimento numa saída coletiva para nossa emancipação, reconhecendo o Estado e a polícia como instituições criadas para reprimir, torturar e nos atacar.

É preciso dizer que tanto Verônica quanto Laura são vitimas deste mesmo Estado que segue utilizando os mesmos métodos de tortura da ditadura militar (http://www.esquerdadiario.com.br/A-repressao-sexual-da-ditadura-militar-a-democracia-Parte-I) contra a população negra, pobre e trans. Compreender que Laura e Verônica são inimigas é não reconhecer a profunda relação de dominação do patriarcado e a ideologia neoliberal que fragmentou o conjunto dos movimentos sócias e lhes retirou sua saída radical, de questionar profundamente o Estado capitalista, a polícia como braço armado da repressão e a necessidade da unidade dos movimentos aliado ao movimento operário na luta revolucionária por uma sociedade sem classes e opressão.

O Estado não é um organismo acima das classes sociais, neutro e justo que existe para garantir a melhoria das condições de vida para as massas trabalhadoras, populares e para os setores oprimidos. Muito pelo contrário, o Estado só justifica sua essência – necessária - enquanto exercer seu papel de dominação de uma pequena minoria de exploradores sobre as massas populares, pobres e exploradoras. As opressões e a profunda situação de miséria com a qual vivemos, quando não seguimos a identidade de gênero hegemônica ou a sexualidade que desavia a moral burguesa conservadora, é uma maneira consciente de aperfeiçoar este regime de dominação. Por isso, é tão importante a fragmentação dos movimentos sociais conquistada nos anos da restauração conservadora. E por isso, a dificuldade de lançar luz para responder profundamente como relacionar a particularidade de Verônica com a defesa incontestável do direito as identidades trans ligada a luta revolucionária por uma outra sociedade onde possamos ser, com condições materiais e psicológicas, quem e o que nós quisermos.

Aceitar a prisão de Verônica é deixar com que o Estado para além da opressão que nos impõem de detalhe a cada problema estrutural ainda nos culpe, julgue e puna pela violência produto da reprodução das opressões. Não precisamos dizer que talvez Verônica nem teria chegado até nós e seria mais uma triste vítima invisibilizada. Mesmo assim conseguindo alcançar visibilidade para denunciar, foram diversas tentativas de esconder o caso, inclusive a própria Coordenadora dos Direitos LGBT, que é parte da Diversidade Tucana, chantageando-a e oferecendo-a redução da pena por livrar a cara deste Estado miserável. Por isso, viemos recuperando a grande batalha de StoneWall contra a polícia (http://www.esquerdadiario.com.br/Para-cada-Veronica-construamos-um-novo-StoneWall), pois é preciso seguir estes passos num forte combate ao Estado capitalista, seu braço armado e suas instituições.


Não a punição dos oprimidos! Nossa educação revolucionária precisa vir de nosso próprio movimento!



A agressão à Laura abriu as portas para todo comentário e xingamento transfóbico. Declarações que Verônica deveria estar morta são apenas uma pequena expressão de quanto a transfobia é legitimada no Brasil. Mesmo com 12 anos do PT no governo, a homo e transfobia só cresceram, isto por responsabilidade direta dos acordos com Cunha, Vaticano, Felicianos e outros tantos reacionários que sistematicamente perseguem os direitos mais elementares da população LGBT combinado com a persistente descriminação a liberdade religiosa. Pois todos sabem que as religiões afro são as únicas que respeitam as identidades não cisgêneras e as orientações não heterossexuais.

Os movimentos feministas radicais, profundamente transfóbicos, seguem negando a existência das identidades de gênero e defenderam que não eram Verônicas enquanto setores do movimento transfeminista se recusaram a defender a consigna porque não defendem universalizar as opressões, encarando-as de maneira tão particular que se tornam impossível de reconhecimento. Ambas estratégias não se propõem a acabar com essa sociedade vigente, senão reforma-la culturalmente, buscando a igualdade politica divorciada da igualdade econômica.

É preciso então debater com os outros setores que se indignaram com o escândalo deste caso. A prisão desta mulher trans significa uma verdadeira barbárie, pois para além de todas as humilhações e opressões, ainda terá de passar anos dentro da cadeia, sem sua liberdade, sofrendo maus-tratos próprios da policia e do sistema carcerário. 

Aos conservadores que enchem a boca para defende sua prisão, temos de dizer "se quer falar sobre igualdade, responda onde esteve as "igualdades" de Verônica e de milhares de travestis e transsexuais no acesso e permanência nas escolas? Onde esteve a igualdade nas oportunidades de emprego? No serviços de saúde? No respeito a identidade de gênero? Só reivindicam igualdade quando cometemos crimes, ignorando que a profunda realidade de violência com qual vivemos sistematicamente nos atingem ficam impunes? Como o caso do eletricista do ABC que foi esfaqueado no seu próprio prédio, e o homofobico fugiu e segue em liberdade? 

Este é o Estado  que deixa impune os casos de feminicidio que só aumentam, que dá aos policiais o privilegio de ser julgado separado da população por seus crimes, que anistiou os torturadores e que nos maiores escândalos de corrupção das últimas décadas se demonstrou incapaz de punir os grandes crimes de políticos envolvidos na operação Lava Jato, no Mensalão ou nos carteis do Metro de São Paulo. Demonstram claramente que a cadeia brasileira é lugar para negros, pobres e trans, não os ladrões do povo, os corruptos e os que vivem da exploração dos outros.

A única forma de garantir verdadeiramente a integridade de Verônica é não individualizar esta situação. É apontar que o movimento Somos Todas Verônica é parte de transformar isso numa grande causa nacional, que exponha a realidade das identidades trans de profunda opressão e marginalização. Nos inspirando em StoneWall orientamos nossa luta de maneira coletiva e nosso ódio contra este Estado mantedor das opressões e da profunda divisão entre os oprimidos. Não podemos entregar Verônica para o Estado, quem deve decidir sobre seu tratamento médico e psicológico não é o Estado, mas sim seus familiares, os movimentos de direitos humanos, o transfeminismo e o movimento de mulheres, sindicatos e entidades estudantis. Temos de exigir a imediata aprovação da Lei João Nery e que possamos ser parte ativa da investigação dos policiais responsáveis pelas torturas. Nenhuma confiança no Estado, assim nasceu nosso movimento e assim que deve seguir.

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