Há dez
dias desde que Verônica foi presa e torturada pela Policia Militar de São
Paulo, a redes sociais se tornaram uma verdadeira guerra de informações, polarizando
opiniões e produzindo um ativismo virtual em defesa de Verônica nunca antes
visto. A campanha #SomotodosVeronica com mais de 19 mil curtidas gerou uma
profunda ampliaçã o do debate sobre as identidades trans que saiu das redes
virtuais e tomou as conversar nos bares, nos locais de trabalho e nos espaços
de juventude. Uma clara demonstração do potencial ascendente da força que a
luta contra a dominação de nossas identidades e de nossas múltiplas
sexualidades vem ganhando no país desde Junho de 2013.
Todavia,
a complicada situação que envolve a agressão entre vizinhos, nos coloca uma
reflexão importante sobre o papel do Estado e da polícia diretamente ligado a
profunda violência e assassinatos contra às mulheres cis* e trans e os limites
da democracia burguesa e a “igualdade das leis e direitos”. Esse caso levanta muitos
debates que neste artigo não daremos conta de tratar. Nos dedicaremos, frente a
necessidade de cuidar da integridade física e psicológica de Verônica,
defende-la contra o Estado responsável pela gigantesca desigualdade de gênero,
do feminicidio e as reviravoltas nos direitos sociais. (*Cis: É a identidade de gênero, também construída
socialmente, de homens ou mulheres não trans. Isto é, que são definidas pelo
reconhecimento, identificação e expressão determinado de acordo com a lógica
normativa de identidade correspondente ao órgão genital: mulher-vagina.
Homem-pênis).
Visibilidade para humilhar ou cooptar
Partindo
de que não há igualdade de vida, e nem de lei (!!!) para milhares de travestis,
homens e mulheres trans e pessoas não binárias (que não se reconhecem nem como
homens, nem como mulheres), a luta por visibilidade veio ganhando contornos
mais profundos. Ora ganhamos visibilidade quando sofremos ou cometemos violência
ora quando está atrelada a um novo nicho de mercado, para um setor da pequena
burguesia LGB (e muito menos)T. As fotos de Verônica assim como os vídeos de homossexuais
agredidos na avenida Paulista, Kaique Augusto, João Donati, Geia Borghi, Piu,
Marcos Vinicius, Indianara são visibilidades para humilhar e estereotipar, uma
forma de “marcar posição”, que nos trataram como animais de caça (origem da
palavra viado) e que a cada nova vítima – filmada e torturada – vão mais
aterrorizar e nos colocar na defensiva.
Quem é
travesti ou do meio LGBT não apenas sabe, mas sente a violência sistemática que
persegue em cada olhar maldoso, nas risadas humilhantes, nos comentários
indiscretos, na condição de prostituição compulsória, na hiper-sexualização, na
sexualidade trans e homossexual tratada como piada, no constrangimento ao ter
de utilizar o nome de registro, na rejeição da maioria das famílias, de ser
vista como doente, pecadora ou criminosa. Para afirmarem que somos loucas, só
basta recorrer a Organização Mundial de Saúde que ainda hoje carrega o Condigo
Internacional de Doenças o F-64, enquadrando a identidade trans e travesti como
parte das doenças mentais. Qualquer mulher trans está sujeita a ser Verônica,
por reagir à sua opressão de maneira desorganizada, por conta própria, por
desespero ou como foi este caso, por desconfiança de transfobia.
A profunda
desigualdade de gênero que sofrem as identidades trans começou a ser
questionada em maior escala com esta campanha, mas não conseguiu ainda
encontrar o caminho para transformar este caso particular numa verdadeira
denuncia de um problema social, que atinge diversas classes sócias, mas que
principalmente diz respeito ao movimento de mulheres, trasfeminismo, movimento
negro e a esquerda.
Nem igualdade na lei, nem igualdade
da vida: “se eu não existo, porque cobrás de mim?”
Lamentamos
e não concordamos com que Laura tenha sofrido qualquer tipo de violência de
Verônica e acreditamos que essa atitude tenha ganhado tamanha visibilidade para
tentar desfazer o foco das denúncias das torturas, profunda humilhação e
desrespeito à identidade trans. É importante constatar que em todos os casos
que ganharam visibilidade sobre agressões ou assassinatos, que a polícia e a
mídia se posicionam alinhadas sobre os casos tentando ao máximo rever as
provas, as declarações, os familiares e as próprias vítimas para no resultado
final não reconhecer estes crimes como homo-lesbo-transfobia.
Ainda
que achemos completamente equivocado a agressão cometida por Verônica, não
concordamos que justamente este Estado acusado e comprovado culpado por
transfobia se responsabilize por sua integridade. Seria muito mais legítimo
reunir os moradores do edifício, a travesti e a idosa agredidas, assim como o
movimento trans junto aos movimentos de direitos humanos e familiares de
Vêronica para fazer um debate buscando responder de maneira fraternal o
ocorrido. Somente com um debate entre todos que realmente se preocupam em
encontrar uma solução, poderíamos demonstrar as consequências de respostas
individuais e assim ser uma maneira educativa para todos para que ações como
essa não venham a se repetir ou parecer como “válvula de escape” para tamanha
situação de opressão que as pessoas trans são submetidas. Somente assim é
possível fazer com que os homens e mulheres trans, as travestis e os demais
setores oprimidos possam avançar junto com o movimento numa saída coletiva para
nossa emancipação, reconhecendo o Estado e a polícia como instituições criadas
para reprimir, torturar e nos atacar.
É
preciso dizer que tanto Verônica quanto Laura são vitimas deste mesmo Estado
que segue utilizando os mesmos métodos de tortura da ditadura militar (http://www.esquerdadiario.com.br/A-repressao-sexual-da-ditadura-militar-a-democracia-Parte-I) contra a população negra, pobre
e trans. Compreender que Laura e Verônica são inimigas é não reconhecer a
profunda relação de dominação do patriarcado e a ideologia neoliberal que
fragmentou o conjunto dos movimentos sócias e lhes retirou sua saída radical,
de questionar profundamente o Estado capitalista, a polícia como braço armado
da repressão e a necessidade da unidade dos movimentos aliado ao movimento
operário na luta revolucionária por uma sociedade sem classes e opressão.
O
Estado não é um organismo acima das classes sociais, neutro e justo que existe
para garantir a melhoria das condições de vida para as massas trabalhadoras,
populares e para os setores oprimidos. Muito pelo contrário, o Estado só
justifica sua essência – necessária - enquanto exercer seu papel de dominação
de uma pequena minoria de exploradores sobre as massas populares, pobres e
exploradoras. As opressões e a profunda situação de miséria com a qual vivemos,
quando não seguimos a identidade de gênero hegemônica ou a sexualidade que
desavia a moral burguesa conservadora, é uma maneira consciente de aperfeiçoar
este regime de dominação. Por isso, é tão importante a fragmentação dos
movimentos sociais conquistada nos anos da restauração conservadora. E por
isso, a dificuldade de lançar luz para responder profundamente como relacionar
a particularidade de Verônica com a defesa incontestável do direito as
identidades trans ligada a luta revolucionária por uma outra sociedade onde
possamos ser, com condições materiais e psicológicas, quem e o que nós
quisermos.
Aceitar
a prisão de Verônica é deixar com que o Estado para além da opressão que nos
impõem de detalhe a cada problema estrutural ainda nos culpe, julgue e puna
pela violência produto da reprodução das opressões. Não precisamos dizer que talvez
Verônica nem teria chegado até nós e seria mais uma triste vítima
invisibilizada. Mesmo assim conseguindo alcançar visibilidade para denunciar,
foram diversas tentativas de esconder o caso, inclusive a própria Coordenadora
dos Direitos LGBT, que é parte da Diversidade Tucana, chantageando-a e
oferecendo-a redução da pena por livrar a cara deste Estado miserável. Por
isso, viemos recuperando a grande batalha de StoneWall contra a polícia (http://www.esquerdadiario.com.br/Para-cada-Veronica-construamos-um-novo-StoneWall),
pois é preciso seguir estes passos num forte combate ao Estado capitalista, seu
braço armado e suas instituições.
Não a punição dos
oprimidos! Nossa educação revolucionária precisa vir de nosso próprio
movimento!
A
agressão à Laura abriu as portas para todo comentário e xingamento transfóbico.
Declarações que Verônica deveria estar morta são apenas uma pequena expressão
de quanto a transfobia é legitimada no Brasil. Mesmo com 12 anos do PT no
governo, a homo e transfobia só cresceram, isto por responsabilidade direta dos
acordos com Cunha, Vaticano, Felicianos e outros tantos reacionários que
sistematicamente perseguem os direitos mais elementares da população LGBT
combinado com a persistente descriminação a liberdade religiosa. Pois todos
sabem que as religiões afro são as únicas que respeitam as identidades não
cisgêneras e as orientações não heterossexuais.
Os
movimentos feministas radicais, profundamente transfóbicos, seguem negando a
existência das identidades de gênero e defenderam que não eram Verônicas enquanto
setores do movimento transfeminista se recusaram a defender a consigna porque
não defendem universalizar as opressões, encarando-as de maneira tão particular
que se tornam impossível de reconhecimento. Ambas estratégias não se propõem a
acabar com essa sociedade vigente, senão reforma-la culturalmente, buscando a
igualdade politica divorciada da igualdade econômica.
É
preciso então debater com os outros setores que se indignaram com o escândalo
deste caso. A prisão desta mulher trans significa uma verdadeira barbárie, pois
para além de todas as humilhações e opressões, ainda terá de passar anos dentro
da cadeia, sem sua liberdade, sofrendo maus-tratos próprios da policia e do
sistema carcerário.
Aos conservadores
que enchem a boca para defende sua prisão, temos de dizer "se quer falar
sobre igualdade, responda onde esteve as "igualdades" de Verônica e
de milhares de travestis e transsexuais no acesso e permanência nas escolas?
Onde esteve a igualdade nas oportunidades de emprego? No serviços de saúde? No
respeito a identidade de gênero? Só reivindicam igualdade quando cometemos
crimes, ignorando que a profunda realidade de violência com qual vivemos
sistematicamente nos atingem ficam impunes? Como o caso do eletricista do ABC
que foi esfaqueado no seu próprio prédio, e o homofobico fugiu e segue em
liberdade?
Este
é o Estado que deixa impune os casos de
feminicidio que só aumentam, que dá aos policiais o privilegio de ser julgado
separado da população por seus crimes, que anistiou os torturadores e que nos
maiores escândalos de corrupção das últimas décadas se demonstrou incapaz de
punir os grandes crimes de políticos envolvidos na operação Lava Jato, no
Mensalão ou nos carteis do Metro de São Paulo. Demonstram claramente que a
cadeia brasileira é lugar para negros, pobres e trans, não os ladrões do povo,
os corruptos e os que vivem da exploração dos outros.
A
única forma de garantir verdadeiramente a integridade de Verônica é não
individualizar esta situação. É apontar que o movimento Somos Todas Verônica é
parte de transformar isso numa grande causa nacional, que exponha a realidade
das identidades trans de profunda opressão e marginalização. Nos inspirando em
StoneWall orientamos nossa luta de maneira coletiva e nosso ódio contra este
Estado mantedor das opressões e da profunda divisão entre os oprimidos. Não
podemos entregar Verônica para o Estado, quem deve decidir sobre seu tratamento
médico e psicológico não é o Estado, mas sim seus familiares, os movimentos de
direitos humanos, o transfeminismo e o movimento de mulheres, sindicatos e entidades
estudantis. Temos de exigir a imediata aprovação da Lei João Nery e que
possamos ser parte ativa da investigação dos policiais responsáveis pelas
torturas. Nenhuma confiança no Estado, assim nasceu nosso movimento e assim que
deve seguir.
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