segunda-feira, 20 de abril de 2015

A repressão sexual e identitária: da ditadura militar à democracia– Parte I

No mês que se completa 51 anos do golpe militar, ainda pouco se discute sobre os profundos impactos da repressão cultural e sexual impostos pelo regime autoritário. É então tarefa nossa recuperar a trajetória da luta pela emancipação sexual desde o Brasil.





Se é correto afirmar que a homo-transfobia já existia muito antes do golpe militar em 1964, certamente também se pode dizer que este período e sua repressão em todos os níveis (político, cultural, cientifico e intelectual) também deixou novas marcas na luta pela libertação sexual no Brasil.
O recente livro “Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade” é uma grande contribuição ao movimento LGBT brasileiro (senão mundial) e contribui para a luta por nossa emancipação, nos dando uma arma que a classe dominante se negou e negaria até o fim a nos conceder: o direito a nossa própria história (como protagonistas e não vítimas).
A primeira onda pela libertação sexual e a chegada da ditadura no Brasil
Enquanto os anos 60 e 70 marcaram um forte levante internacional da juventude e grandes demonstrações da força da classe trabalhadora, se preparou e se implementou uma ditadura no Brasil.
A partir do Maio francês e a luta contra a invasão imperialista no Vietnã avançavam exemplos como a grandiosa revolta de Stonewall em 1969 e a efervescência de grupos políticos voltados à luta por igualdade para os homossexuais. As massas podiam ver o capitalismo como algo a ser superado e todos os anseios poderiam ser emancipados com a luta revolucionária da classe trabalhadora em unidade com os que mais sofriam com este sistema. Os símbolos dessa luta exigiam a ampliação do reconhecimento de outras identidades e orientações sexuais.
No Brasil, o golpe militar debilitou o surgimento dessa tendência, eliminando os direitos democráticos de organização política e cultural. Isso significou uma organização política tardia menos influenciada pela primeira onda mundial da libertação sexual, menos apaixonada pelas ideias revolucionárias e mais atingida pelas derrotas históricas impostas pelas direções do movimento operário.
A forma da luta já era imersa no contexto neoliberal de luta por mais direitos e inclusão à ordem capitalista – encontrando nas identidades cis e heterossexual a “maior realização” ou “emancipação do ser” ignorando o caráter de classe e os limites impostos pelo capitalismo.
Também é relevante lembrar que o surgimento de grupos políticos pela igualdade de gênero e sexual são marcados pela epidemia da AIDS que era amplamente divulgada como câncer-gay. Isto impôs uma reorganização da comunidade LGBT em ONGs dando hierarquia a prevenção e atenção para os sorospositivos.
Censura e repressão x resistência e organização
A grande censura imposta pela ditadura impedia questões elementares como que os LGBT pudessem recolher o número de agressões, violência e assassinatos para ter uma análise cientifica da homo-transfobia. Apenas em 1980 o Grupo Gay da Bahia começaria a coletar estes dados para ter algum tipo de registro de “quem a homofobia matou hoje”. Todavia estes esforços não impediram o surgimento do grupo Dzi Croquetes em 1973 com grande enfrentamento moral e artístico, nem mesmo as chocantes performances de Cláudia Wonder, travesti ativista ou a impressionante imprensa Lampião de Esquina lançada em 1978.
Nos anos de chumbo, a ideologia que tratava a sexualidade não heterossexual como doente, pecadora, perigo social, e atentado à família também dizia que esse “modo de ser” é parte de uma “conspiração comunista”. Para combater este “mal” se utilizou de diversos recursos: descriminação nos locais de trabalho, assédios, decretos e uma ampla campanha pela moral e os bons costumes.
A lei de vadiagem, existente desde 1924, utilizada de maneira acrítica a serviço da dominação, exploração e submissão, ganhou força em São Paulo em 1976 com o delegado Guido Fonseca à frente, permitindo a prisão de todas travestis para averiguação de “vadiagem”, onde eram julgadas por suas roupas por “mais ou menos perigosas”. Entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de Julho de 1977 foram 460 travestis detidas, segundo conta o livro “Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade”.
Além desta repressão expressa nestas muitas prisões que puderam ser registradas, o Estado também organizou ou deixou ’correrem soltos’ grupos de extermínio que perseguiam LGBTs, negros, trabalhadores, pobres cotidianamente, e deixaram profundas marcas em vários locais do país. Na transição à democracia burguesa muitos destes grupos com ligações com o Estado foram as bases para o surgimento de milícias. Esta repressão e exploração ligava-se e ainda se liga frequentemente à prostituição, à cafetinagem, proxenetismo é outras herança de opressões anteriores à ditadura mas que esta incentivou, e que ainda carregamos até hoje.
A repressão também atingiu o médico Roberto Faria, primeiro brasileiro a realizar cirurgias de modificação corporal, foi processado pelo Ministério Público por “grave lesão corporal”, foi condenado a dois anos de prisão, mas mais tarde foi absolvido pelo STF. Mas foi no governo de Paulo Maluf que a perseguição se acentuou. O delegado José Wilson Richetti, dois dias depois de sua posse, anunciou a operação Cidade que prendeu 172 pessoas, segundo o próprio delegado eram “homossexuais, prostitutas, travestis e um individuo com posse ilegal de arma”.
Como denuncia o documentário de Rita Moreira, a operação Tarantura também foi responsável pela perseguição às travestis, onde em muitos casos, desapareciam, eram atiradas no rio Tietê em São Paulo quando não assassinadas.
Frente tamanha repressão, muito tardiamente, em 1978, surgiria o primeiro grupo de autoafirmação homossexual chamado SOMOS, em referência ao Boletim de um grupo gay argentino (FLH) que carregava este nome.
Até hoje conhecido por sua bravura de ter ido a assembleia na Vila Euclides no 1 de Maio de 1980, com cerca de 50 membros, com faixas “Contra a descriminação do/a trabalhador/a homossexual” e “Contra a intervenções no ABC” foi um grito de resistência que exigia seu próprio espaço. Algumas semanas depois, 14 de Junho, no centro de São Paulo houve a primeira manifestação pública do movimento LGBT contra o delegado Wilson Richetti responsável pelas rondas e operações contra LGBT.
Também é enfático lembrar do que ficou conhecido como "pequeno Stonewall brasileiro", a revolta das mulheres lésbicas no Ferros´s Bar. Essa revolta se deu num bar muito frequentado às noites por mulheres lésbicas, contragosto do proprietário que não queriam que o bar fosse considerado para este público, se negando inclusive a incluí-lo no roteiro para lésbicas para o famoso jornal Lampião de Esquina.
O grupo LF (Lésbico Feminista) e GALF (Grupo de Ação Lésbica Feminista) vendiam ali seus boletins "Chanacomchana". No dia 23 de Julho de 1983, enquanto as ativistas vendiam seus boletins, o proprietário junto com seus seguranças e o porteiro expulsaram as mulheres à força e disseram que estavam proibidas de voltarem e venderem o boletim. O dono inclusive chamou a polícia. Porém, as mulheres lésbicas não desistiram, pelo contrário, decidiram pela retomada do Ferro’s. Articularam-se com a imprensa, com os movimentos homossexuais, ativistas de direitos humanos, e no dia 19 de Agosto do mesmo ano voltaram com um grande número de apoiadores e invadiram o bar. O porteiro sozinho tentou evitar, mas não teve jeito. As lésbicas tomavam os bar e impuseram ao dono que fosse permitido a venda dos materiais.O que em 2003 seria homenageado à esta data como Dia Nacional do Orgulho Lésbico.
É este surgimento do movimento LGBT durante o ascenso grevístico que aponta a força da aliança dos LGBT com os trabalhadores que permitiram construir uma nova sociedade sem qualquer tipo de opressão. E recuperam a verdade do pensamento de Engels de que ““É um fato curioso que a cada grande movimento revolucionário vem à tona a questão do ‘amor livre’.” (F. Engels, 1883)

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